Do que exatamente é constituída a natureza profunda de uma família? O que é mais importante, os laços de sangue ou a afinidade? De que forma seus membros são cosidos uns aos outros? Esse singelo e surpreendente filme japonês, soa oportuno, por colocar num primeiro plano uma família de pobres cidadãos, não os mostrando como animais presos aos instintos, nem destituídos de sentimento. A sujidade do olhar dos poderosos não encontra neles motivo para os criticar, a não ser o fato, de sua possível existência, colocar por terra o discurso de que todos são burros, incapazes para serem considerados seres humanos, e de que não destroem a natureza com o seu respirar. Em suma, não se pode colocar numa mesma vala todos os membros de uma classe social, nem mesmo toda a espécie humana. A nova ordem mundial, esquecida da mensagem do Cristo e de outros luminares, só se valem de seus nomes na aparência. Felizmente o diretor Kore-Eda possui o olhar necessário para desnudar seus personagens e fazer com quê quem assista reflita sobre seu papel no mundo.
” Noite fria em Tóquio, pai e filho que vivem de pequenos furtos, retornam ao seu lar e no caminho se deparam com uma pequena criança sozinha. Ela demonstra ter frio e fome. Eles a recolhem a seu lar, a aquecem e a alimentam. Quando ela adormece eles resolvem leva-la de volta, mas nesse instante percebem que ela possui marcas de queimadura e hematomas pelo seu frágil corpo. Dão meia volta e a introduzem no seio de seu lar, não mais como uma hóspede, mas sim como um deles. Tirada da violência dos seus, ela se integra a nova família e passa a receber ali o afeto que lhe faltava de onde veio. E ela passa também a ser parte ativa nos “negócios” da nova família. Surpreendentemente o seu desaparecimento só é notado semanas depois, o que os obriga a mudar sua aparência e seu nome".
O filme se arvora também na questão da invisibilidade social. Seres que parecem inexistir para o todo que os rodeia. São apenas números ou objetos facilmente descartáveis (velhos, subempregados, crianças maltrapilhas) que andam cheias de vida pelas ruas da capital, mas que soam como fantasmas andando a esmo.
Kore-Eda nasceu em 1962. Ano de partida do grande Ozu. Parece ter aprendido com a obra desse mestre muito. É um pintor delicado das frágeis atmosferas. Opta pela intimidade silenciosa e cheia de mistérios. Não existem palavras que carreguem de significados toda a complexidade humana. Os personagens que nos surgem possuem várias camadas, todas elas ricas. Personagens despreocupados, que destoam de um mundo cheio de ambição. Eles vivem e tudo desmorona quando o as verdadeiras falsas aparências se apercebem da realidade deles. Realidade de quimera (ou será de realidade?) feita de gestos de solidariedade, de seres livres, que roubam apenas para sobreviver, nunca com o intuito de um gozo fútil. A câmera capta a leve derrocada do castelo de areia, mas permanece os defendendo. Calmamente, sem cair no drama, sem se levar pela cólera, os danos causados pela hipocrisia social são revelados. E o final coroa o questionamento: Para onde está indo a humanidade das pessoas? Séria denúncia sobre a exaltação do verniz social que visa esconder sobre ele os problemas a serem resolvidos pela humanidade.
Escrito por Conde Fouá Anderaos