A Rosa Púrpura do Cairo (1985)
O final de “A Rosa púrpura do Cairo” é o que motivou Allen a criar essa pequena jóia. Afinal, que estranha magia emanava das telas quando Ginger Rogers e Fred Astaire dançavam. Quem assiste seus filmes hoje em dia, dá-se de frente com roteiros ingênuos, mas os números de dança são de deixar boquiabertos. Fred Astaire além de ser o maior sapateador-dançarino do cinema mundial, é também um bom cantor. Para consolo da personagem principal(Cecília), e para compreensão do que se deu nas telas, somente aquela imagem de dois que se fundiam em um, em perfeita harmonia, era capaz de exprimir o poder que o cinema tinha naquela época, e que exerce em todos aqueles que se deixam invadir por esta arte.
“Na década de trinta, no auge da depressão americana, Cecília trabalha em um bar como garçonete com sua irmã. O dinheiro suado, ganho com tanto sacrifício, acaba parando nas mãos de seu marido alcoólatra. Para suportar toda a desgraça que se coloca em seus ombros, ela tem como aliado, um pequeno cinema, onde ela vê e revê “A rosa púrpura do Cairo” um singelo melodrama. Lá ela se deixa seduzir por Tom Baxter, o personagem principal. De tanto crer ser realidade o que vê na tela, ela atrai o personagem (interpretado por Gil Shepherd – um ator de segundo escalão) que acaba saindo das telas e se atira literalmente nos braços de Cecília. Tem-se início uma trama que envolverá o interesse dos chefes grandes estúdios, temerosos de não poderem mais manipular as criações que criam suas. Daí ...”
O filme é de 1985, naquele ano o grande premiado pela academia foi o acadêmico Entre Dois Amores de Sydney Pollack. Dos indicados daquele ano nenhum poderia lhe fazer sombra: Um Huston menor (A honra do poderoso Prizzi); um Peter Weir recém ingressado em solo americano (A testemunha); um Babenco competente (O beijo da mulher aranha) e um Spielberg querendo ser levado a sério (A cor púrpura – a Academia não o indicou a diretor, optando por Akira Kurosawa, a meu ver, o melhor dos escolhidos). Allen fez uma obra superior até a “Ran” de Kurosawa. Que a academia estivesse bronqueada com Allen é até compreensível. Mas não reconhecer a performance de Mia Farrow e Jeff Daniel (sua melhor aparição nas telas até hoje, perfeito na pele dos dois personagens) foi exagerado. Ainda que “A Rosa púrpura do Cairo” não seja superior a Zelig (uma obra anterior) é ainda dotada de uma originalidade, de uma simplicidade e de uma condução que a torna uma jóia de reluzente beleza. Alguns viram que tal originalidade não era tão original assim (Bancando o Águia de Buster Keaton). Contudo o caminho trilhado por Allen foi outro. Lá Keaton era prisioneiro da dinâmica de uma montagem de filme. Era um personagem real, momentaneamente preso.
No filme de Allen, o que se dá é o inverso. Mostra a reação que um personagem de ficção tem ao adentrar em uma realidade da qual ele não sabe o que lhe espera. E ele cai no meio de uma realidade que difere de tudo o que se passava na tela: a realidade construída pela crise de 1929. Mesmo assim, nesse ambiente hostil, ele encontra algum encanto. Quando a intimidade se torna maior ele percebe que não existe música ao fundo. Também ainda que fora das telas, o seu encontro com a meretriz vivida por Wiest, é um dos grandes momentos do filme, afinal ainda que fora da tela ele é ainda um personagem. A sua inusitada reação ante a proposta, desarma a mulher e a faz crer que ainda é possível sonhar. Contudo com o passar do tempo ele conclui que o melhor a fazer é voltar ao país das maravilhas: o filme. E o clímax se dá: irá Cecília acompanha-lo. Optará ela por Tom Baxter ou Gil Shepherd (enviado pelos estúdios para suplantar a crise)? Sem querer desvendar a quem não assistiu o que ocorre, limito-me a lembrar que Tom Baxter nada mais seria que um eu incômodo de Shepherd, já que foi ele que permitiu a sua construção. O final não é simplesmente melancólico. Quando a atração é trocada naquele pequeno cinema, surge o verdadeiro cinema que marcou a década de trinta. E nos lembramos saudosos, que em certa época , foi a sétima arte um lenitivo para a dor real. Duas horas que mudavam o estado de ânimo, que não fornecia efeitos colaterais, que talvez despertassem em cada ser, o Tom Baxter que jazia adormecido.
Existem alguns que acham o filme bom pela não presença de Allen. Ingenuidade pura. Allen fez uma comédia quase sem gags, mas uma comédia de situações onde a narrativa flui de maneira natural, guiada unicamente pelos personagens, pelos seus sonhos e fantasmas que ganham vida, que tornam-se reais diante de nossos olhos, sem que no entanto tenha de se chegar a uma conclusão precisa. O diretor brinca mais uma vez com a realidade, como em seu Zelig. Só que aqui, desde o início, ele coloca-nos a par que se trata de um simples filme, mas hipnotiza-nos, fazendo-nos crer na fantasia que vemos. Allen, ainda que oculto, sorri atrás de cada imagem projetada na sala. Inclusive por detrás daquela que não foi criação sua, mas que fez parte de sua formação: Fred Astaire, Ginger Rogers, a música de Irving Berlin...
Filme de um artista amadurecido que merece admiração e aplausos.