Page Nav

SHOW

Slide

HIDE

Hover Effects

TRUE

Pages

Ad Sense

Corra (2017)

Revendo “Corra” (2017) pela Netflix, percebo que Peele realizou um filme realmente rico em detalhes que nos conduz a vários dilemas existen...

Revendo “Corra” (2017) pela Netflix, percebo que Peele realizou um filme realmente rico em detalhes que nos conduz a vários dilemas existenciais. Um filme que cresceu muito na revisão, e que aquilo que me surgiu como certa flacidez quando do primeiro contato, mostra-se agora acertado. Uma das grandes virtudes do filme é nos desarmar, ao oferecer de forma enganadora, algo já sabido. É claro a referência ao Filme de Stanley Kramer – Adivinhe Quem Vem Para Jantar (1967), mas se o filme de Kramer, a despeito do elenco formidável, soa datado e superficial, pois oferece um ser humano perfeito, ou como queiram, um Otelo civilizado e afável, de onde emana só perfeição. Ou seja, não se via o outro, mas se projetava no visitante, todas as qualidades sonhadas para os anfitriões. Em Corra, o diretor abre o filme se valendo de clichês. Não aqueles do gênero, que serão até respeitados, mas os do estereótipos sociais e raciais, focalizando um indivíduo negro em um bairro de ricos, inseguro e paranoico com a visão de uma viatura branca (a cor é proposital) que provavelmente o espreita. A referência ao Black Lives Matter; Movimento Negro que se mobiliza contra o preconceito sistemático do sistema policial contra os Negros. E mais uma vez o filme se vale de uma outra estrutura já conhecida, o clássico As Esposas de Stepford (1975) para o subverter.

Uma jovem decide levar o namorado afro-americano para a casa de seus pais para passar alguns dias. Ao conhecer os progenitores da sua noiva (o pai é neurocirurgião, a mãe psicoterapeuta), o herói de Get Out encontra-se perante um casal de grandes burgueses brancos progressistas, iluminados, confessando ter apoiado e votado em Obama e acolhendo o namorado de sua filha com uma benevolência aparentemente indiferente à sua cor de pele. Logicamente que o fosso da barreira social e de raças são ainda perceptíveis quando o herói verifica que os empregados da casa são todos negros e que os seus olhos sobre eles geram uma vaga culpa. No entanto, instala-se, insidiosamente, uma angústia surda, um mal-estar cada vez mais frequente e, ao mesmo tempo, sem verdadeira causa, nem objetos visíveis. A tolerância afirmada surge, com efeito, como outra forma de considerar, com uma distância suspeita, a diferença do anfitrião. E a ameaça não parece surgir da ojeriza, mas sim da acolhida. O irmão da namorada ao mesmo tempo que surge desprezível, traz certo conforto, pois se conhece o perigo que surge revelado.

Por outro lado, a gentileza e a atenção racional dispensada pelos anfitriões paulatinamente torna-se mais ameaçadora, que o comportamento estranho dos supostos empregados. Toda essa construção alimenta em nós horror e preocupação, justamente por se depreender do outro, não a ojeriza, mas o desejo, a inveja de não ser negro. A ameaça nasce da perturbação causada por se sentir admirado, por tudo parecer tranquilo demais. Nada é mais racista do que o discurso anti-racista, quando esse se esforça para anular a alteridade alheia. Essa é a proposta mórbida e velada do filme de Peele. Não mais o discurso de possuir o outro como um objeto, mas de se tornar o outro, anulando-o. E também aquele de bancar Deus, perpetuando-se em condições muito melhores. Ao aceitar uma pretensa superioridade genética do outro, em realidade, vampiriza-se a própria vida. O que antes assustava, torna-se objeto de desejo. O racismo outrora alimentava-se de uma fobia sexual e de um terror da sujidade. Jordan subverte-o, almeja-se agora alimentar-se dele. Gozar da potencialidade de sua compleição física. O que nos sobra de tudo isso é justamente a certeza de que a tara da humanidade não se encontra na aparência. Ela subsiste na satisfação e na busca incessante da satisfação dos instintos. O corpo humano é apenas um repasto para os espíritos que desejam se prender a uma visão puramente hedonista da existência. E o terror maior que nos fica, é saber que o monstro se encontra vivo não fora, mas sim dentro de nós.



Escrito por Conde Fouá Anderaos