Na Natureza Selvagem
Capítulo I — Nascimento: O desejo de despojamento
“Na Natureza Selvagem” (Into the Wild), de Sean Penn, narra a travessia moral e afetiva de Christopher McCandless, que, ao queimar dinheiro e abandonar nome, percorre um arco clássico do herói moderno em busca de autenticidade. Sua revolta é, antes de tudo, antídoto contra a duplicidade: a família como teatro de aparências, a universidade como rito vazio, o consumo como mística da insuficiência. Há, nessa primeira ruptura, uma gravidade espiritual que remete à “Confissão” de Tolstói, quando este admite que, apesar do êxito e do louvor social, “a vida não tinha sentido.” McCandless, ao rebatizar-se “Alexander Supertramp”, dramatiza essa recusa radical: não é apenas fuga; é a tentativa de inaugurar um outro regime de verdade.
Eddie Vedder, cujas canções funcionam como uma consciência lírica do filme, dá o pulso dessa renúncia em versos que ressoam a travessia do início: “Gonna rise up, throwing rocks at the glass house” — como quem fere o espelho das convenções para reaver o rosto. A imagem da casa de vidro, transparente e claustrofóbica, traduz o paradoxo de uma modernidade que tudo expõe e, no entanto, aprisiona. O gesto inaugural de McCandless, portanto, é um “despojamento produtivo”: perder para ver.
Capítulo II — Adolescência: Errância, amizade e a ética do encontro
A estrada, para Jack London, é escola de perigos e medida de caráter. Em Contos do Alasca e sobretudo em O Chamado Selvagem, a lei é a da necessidade: comer, aquecer-se, sobreviver. Porém, em McCandless, a errância não é apenas aventura sensorial; é disciplina ética. Ele lê e sublinha, anota e partilha. Suas amizades — com Jan e Rainey, com Ron Franz — funcionam como estações de cuidado, onde o asceta aprende a linguagem do afeto. Se London dramatiza o embate entre instinto e civilização, McCandless tenta transmutar o instinto em virtude: comer pouco, gastar nada, falar baixo, acolher.
Em “Guaranteed”, Vedder suspira: “Everyone I come across in cages they bought.” O verso dá um contorno social aos encontros de estrada: não é o nomadismo por si, mas a crítica às jaulas voluntárias — cargos, dívidas, objetos, expectativas herdadas. A hospitalidade recebida por McCandless prova que a liberdade, quando não é misantropia, irradia: ela convoca os outros a experimentarem um ar mais fino.
Capítulo III — Maturidade: A tradição do ermo e o evangelho de Thoreau
Walden, de Henry David Thoreau, paira sobre o filme como uma escritura fundadora. A cabana no lago, o cultivo do feijão, a contabilidade minuciosa do mínimo necessário, o “simplicity, simplicity, simplicity” — tudo serve a um argumento moral: a vida boa requer reduzir ruído, não aumentar abundâncias. McCandless leva essa premissa ao limite geográfico do Alasca, transformando a máxima em provação. Se Walden é uma didática da desobediência civil e do contentamento austero, o “Magic Bus” é liturgia: a cozinha de campo, o diário, o rito do fogo, a pedagogia do frio.
Mas há fricções. Thoreau praticou a retirada a poucas milhas de Concord; McCandless aposta numa distância quase absoluta. O filme, nesse sentido, ensina um corolário thoreauviano: que a medida da solidão não é apenas espacial, mas relacional. Em “Society”, Vedder intona: “It’s a mystery to me we have a greed with which we have agreed.” A crítica é política, mas a conclusão é afetiva: a sociedade que empobrece é a que confunde vínculo com posse. O retiro, então, é tentativa de purificar o vínculo.
Capítulo IV — Sabedoria: Tolstói, a conversão ética e o amor imparcial
Em Tolstói, sobretudo na maturidade, a conversão ética implica renúncia da propriedade, pacifismo e um cristianismo sem ornamentos. McCandless lê Tolstói como quem procura um catecismo para a vida simples. Em cartas e diários, ele ecoa a intuição tolstoiana de que o amor verdadeiro não seleciona: é “para todos”, começa nos vizinhos e alarga-se. Por isso, o caminho de McCandless não é desprezo dos outros, mas busca por um amor não instrumentalizável. O encontro com Ron Franz dramatiza esse aprendizado: a oferta de adoção e a recusa temporária, ambas sinceras, fazem do afeto um exercício de liberdade.
A canção “Rise” acende essa passagem com um imperativo breve: “Gonna rise up, find my direction magnetically.” O advérbio magnetically sugere que a bússola moral foi calibrada por leituras, perdas e escuta. É menos voluntarismo, mais gravidade: a direção não é escolhida; é aceita.
Capítulo V — O Chamado: Jack London e a pedagogia do risco
Se Tolstói fornece o horizonte ético e Thoreau, o método, London impõe a prova. Em O Lobo do Mar e no ciclo do Klondike, a natureza despoja o homem de ficções: o frio não negocia. McCandless, ao entrar no Alasca com provisões magras e confiança larga, põe-se à escola de London — e é reprovado por detalhes: um rio que cresce, um guia não consultado, uma planta mal identificada. A linha tênue entre coragem e temeridade aparece não para ridicularizá-lo, mas para lembrar que a liberdade sem técnica é, muitas vezes, voto de martírio.
Em “Hard Sun”, Vedder amplia a escala: uma vida pequena sob um sol imenso. O refrão, repetido como mantra, dá o sentido cósmico da aventura: não é o triunfo do indivíduo sobre o mundo; é sua inscrição, humilde e frágil, na ordem vasta da terra.
Capítulo VI — A Revelação: A verdade como relação
O momento crucial do filme cristaliza-se na anotação “Happiness only real when shared.” A frase, atribuída no imaginário ao próprio Chris, dialoga com Tolstói, para quem a alegria é fruto do amor ativo, e com Thoreau, para quem a amizade é “o ápice da sociedade”. A intuição de McCandless, no limiar, é menos concessão ao social e mais teologia do comum: a verdade que procurava na solidão não é negada pelos outros; é cumprida neles. O ermo purificou os termos do encontro.
Em “Long Nights”, Vedder baixa o tom: “Have no fear for when I’m alone, I’ll be better off than I was before.” A linha, lida à luz da anotação final, ganha nova semântica: a solidão melhora quando abre caminho para o dom; caso contrário, é apenas polimento do eu.
Capítulo VII — Epílogo: Ética da medida e herança crítica
O filme convida a uma ética da medida. Com Thoreau, aprendemos a simplificar; com Tolstói, a reorientar a vida para o amor e o trabalho honesto; com London, a respeitar o risco como gramática da realidade. McCandless, falível e generoso, lembra que uma ética sem corpo naufraga, e que uma técnica sem ética se desumaniza. A verdadeira lição talvez seja dialética: buscar o essencial e, ao alcançá-lo, regressar; provar a solidão e, por fidelidade à verdade que ela revela, partilhá-la.