quinta-feira, 17 de dezembro de 2020
Adeus, Meninos (Au Revoir, Les Enfants) (1987)
sexta-feira, 27 de novembro de 2020
A Mosca (1986)
Existem filmes que ficam pouco tempo em nossas cabeças. Mesmo quando são bem realizados, algumas dessas obras se tornam apenas lembranças ordinárias em meio à caótica repetição e reprodução cinematográfica no modo se fazer cinema dos tempos atuais. Tornam-se, assim, meros fragmentos de imagens que lembramos vagamente de ter assistido algum dia. Não raro, lembramo-nos menos do filme em si que da impressão que nos causou: - "ah, já assisti esse! Não me lembro bem do que acontece, mas lembro que era até que bom..." - quem nunca sentiu algo parecido que me atire a primeira pedra. Em contrapartida, alguns poucos filmes parecem ser carregados de uma proteção anti-esquecimento. Filmes esses, que inevitavelmente marcam nossas vidas para sempre. Seja pela carga dramática, seja pelas cenas grotescas, A mosca (The fly) do diretor David Cronenberg é um desses casos.
Cronenberg é um cara estranho. Amante do conhecimento técnico-científico e, ao mesmo tempo, das artes literárias, sempre se interessou pelas áreas mais diversas do saber humano e chegou mesmo a cursá-las ambas (Ciência e Arte) na faculdade, terminando sua formação apenas na segunda, a qual se reflete de modo bem claro em filmes que inspiram-se em obras literárias. Partindo de tais obras, o diretor muitas vezes as adapta, reinventa, revira-as de cabeça pra baixo; É o que acontece em Naked Lunch "adaptação" do livro homônimo de William Burroughs (Reparem que me recuso categoricamente a chamar o filme pelo título que lhe deram em português, a saber, Mistérios e Paixões, vai entender o que se passa na cabeça dos tradutores de títulos...), obra na qual os devaneios do escritor são subvertidos para a tela com uma engenhosidade assombrosa.
A Mosca, ao lado de Naked Lunch talvez seja sua obra mais sincera, uma vez que usa de muito conhecimento científico, afinal, apesar de bizarra, não deixa de ser uma ficção científica, mas sem jamais abrir mão de seu conhecimento literário; referência a Kafka é uma constante em quase todos seus filmes. E aqui a referência à Metamorfose é indisfarçável. Nessa refilmagem do filme A Mosca da Cabeça Branca, de 1958, Cronenberg apresenta uma visão dilemática da relação entre uma jovem jornalista ambiciosa, Verônica (Geena Davis), e um exímio cientista, Seth Brundle (Jeff Goldblum), que conseguira criar uma máquina de teletransporte. Contudo, ao testá-la, consigo mesmo como cobaia, acidentalmente recombina seu DNA com o de uma mosca. Assim, aos poucos começa a mudar incessantemente, e à medida que suas transformações físicas vão se acentuando a forma como os outros se relacionam com Seth, inclusive Verônica, também muda.
Mas por que bem uma mosca, pode-se perguntar. Já vi muitas pessoas que sentem afeição por baratas, ratos, mas moscas? Um poeta disse certa vez que o único propósito de uma mosca é não ter propósito. Ficam ali zumbindo um barulho insuportável. Elas são oportunistas. Tomam nossas sopas. E têm uma agilidade, um esquivo, dignos de ganhar um Oscar, se houvesse uma categoria desse tipo. Então, por que diabos o diretor canadense escolheu justamente uma mosca?
Em certa entrevista, Cronenberg fez uma analogia entre o que é mostrado em um filme e a realidade fora dele. Disse ele que ao se fazer uma comédia com uma pessoa escorregando em uma casca de banana não se pode mostrar a realidade, a qual poderia envolver fraturas cranianas e espinhas quebradas, deve-se fazer o que for apropriado para o filme, no caso, apenas o efeito cômico da queda e não suas consequências reais. Ora, sendo assim podemos concluir que o efeito que o diretor quer é exatamente o oposto do riso, já que o que mais se vê em seus filmes são tripas escorrendo, artrópodes asquerosos e mutações genéticas sinistras. E nesse sentido, o terror que a mistura da realidade com a fantasia proporciona é algo inevitável.
Não se trata, contudo, de um simples filme de terror propriamente dito. É irônico ver que o que de fato assusta não são as cenas escatológicas, mas sim o quão repugnantes são princípios sobre os quais se fundam certas relações sociais. Mais do que imagens difíceis de se esquecer, o filme nos fornece uma boa lembrança de como o mundo sensível importa. No fim das contas, Cronenberg que somos mesmo de carne e osso. Há coisas repulsivas aos olhos, de tão feias. Há zumbidos irritantes. Há coisas que cheiram mal. Entre pêlos, vísceras, vômito, torna-se cada vez mais difícil manter a humanidade quando todos à sua volta o tratam como mosca. E isso não porque o que importa é o que se é por dentro, não é aquela velha história de que no fundo há algo de bom e belo, enquanto por fora o que se vê é apenas um monstro, mas porque não se deve cair nesse dualismo barato entre o mundo corpóreo de fora e as bondades dentro do coração.
É como se Cronenberg quisesse dizer: quando se age e se pensa como uma mosca é porque já se tornou uma. E de moscas o mundo está cheio!
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
Coringa (2019) - Crítica
Batismo de Sangue (2006) - Crítica
Relatar os anos de chumbo no Brasil é importante. Contudo ter todo o cuidado para se relatar isso é função importante. O filme de Ratton me incomoda. Incomoda na realidade de duas formas: Pelo que relata e pela forma com que fez com que o relatado soasse falso, caricato, deslocado em muitos momentos.
Sei que o filme é baseado em escritos de um dos seus protagonistas: Frei Betto. Curiosamente foi o único dos quatro protagonistas que escapou das sessões de torturas chefiadas pelo Papa( ironicamente uma alcunha que serve bem ao propósito dos que se julgam acima dos demais e acreditam poder fazer uso desses para suas satisfações pessoais). Ora em termo do que conta, o que ocorria na época com os que eram presos, choca e incomoda. Sou contra a tortura em qualquer circunstância. Não importa quem seja o alvo dela. A história que é relatada prende a atenção. Excetuando-se a excelente fotografia, no entanto, o que vemos na tela de bom é mais mérito do livro, do que de Ratton. O diretor não conseguiu dotar sua narrativa da veracidade necessária. Soa falso o que vemos; forçado mesmo. Não consigo enxergar culpa do elenco nisso, ainda que muitos critiquem Cássio Gabus Mendes (o Papa – Sérgio Paranhos Fleury) e os torturadores por soarem caricatos. Aliás, acho boa a escolha do elenco. O que me perturba é a mise en scène. Poder-se-ia ter diminuído com hiatos, vazios, sugestões, as diversas cenas de torturas (próxima do real – o real jamais pode ser alcançado). Tal insistência mais do que chocar, acaba destituindo de profundidade o que se queria denunciar. Quem viu “O labirinto do fauno” não se esquece da cena em que o Capitão Vidal reduz a face de um camponês a um monte de carne disforme matando-o. Tal cena não dura mais do que míseros segundos, mas segue incomodando o tempo todo. Talvez as cenas de torturas causassem maior impacto se ficassem restritas as lembranças de Tito. Soltas, curtas, valorizadas ao invés de exaustivamente longas.
O filme tenta provar que Tito não teria se suicidado. O ato seria uma forma de resistência a incômoda presença do Papa em sua mente. Tal, no entanto, não encontra resguardo na própria fé que os frades professam. Tal ato é condenado pela instituição a que servem. Se a justiça é justa, ela não permite de exceções.
O filme peca também ao mostrar ser parcial. Justo que se mostrem os excessos da autoridade. Mas não existiam excessos também praticados por aqueles que pregavam outro governo? Não quero com isso esvaziar a denuncia a tortura. Cabe ela ser a vilã maior da história. Em época em que se promove um Capitão torturador a Coronel (Nascimento de Tropa de Elite), fica-se a preocupação de que talvez esse mal esteja sendo arraigado a nossa civilização como algo necessário. Estamos realmente na barbárie ou somos dignos de nos considerarmos povo civilizado? Lembrar os excessos do passado é sempre bem vindo. Desde que seja para não louvá-los. Faltou a Ratton dar, sobretudo a tortura, o desprezo que ela merece. E esse objetivo ele não atingiu. Também faltou um melhor aprofundamento do que motivava realmente esses agentes do estado. Até hoje filme nenhum se dignou a explicar. Nem o autor do livro no qual a obra foi inspirado, pois ele afirmou: “Toda vez que alguém viola o ser humano, violenta, oprime, está realizando o ateísmo militante.” Classificar como ateus quem tortura é rídiculo, pois todos sabem o que ocorria no Tribunal da Santa Inquisição. Aliás, não seriam muito desses agentes semelhantes aquela velhinha que aguardava João Huss ser queimado e viu um pequeno toco de madeira rolar para longe do amontoado de madeira que serviria para arder a vítima. Ela corre para devolvê-lo ao monte e finda a missão faz o sinal da cruz satisfeita por ter contribuído para a causa de Deus. Huss balançou a cabeça como a dizer: Santa Ignorância. Lembre-se Frei Betto que o Monsenhor também profanou esse templo vivo ao coadunar com o que ocorria. E todo aquele que prega a luta armada, seja ela justa ou não. Já é tempo de conhecer o passado, para não repetir seus erros no presente. E que aqueles que foram vítimas da tortura não tenham tido seus corações tomado pelo fel. Trabalhem para que esse mal jamais volte a se instalar, ao menos institucionalmente, no solo pátrio.