Like Box

header ads

Triângulo do Medo (2009) - Teoria

Os escritos a seguir NÃO são aconselháveis para quem não tenha assistido ao filme.

Introdução

A intenção do presente texto será especular uma teoria acerca da significação do filme, uma busca pelo seu “sentido”. Contudo, o cinema é uma arte. E, como tal, não precisa necessariamente ser um retrato fiel do mundo real. Na verdade, já se disse mesmo que a arte só existe porque a vida real não basta. Digo isso porque uma interpretação que se preze não pode querer forçar a arte a sempre ser e funcionar exatamente como o mundo.

É preciso, muitas vezes, não exatamente deixar de lado as leis da natureza e a realidade das coisas tais como são - a Estética nos ensina que a arte deve possuir um grau de verossimilhança -, mas é preciso, sem dúvidas, colocá-las entre parênteses, sobretudo quando se assiste a um filme que se propõe como arte: seja uma ficção científica, seja uma fantasia, ou mesmo uma comédia romântica. 

No caso de Triangle (traduzido esdruxulamente, como se costuma em nosso país, por Triângulo do Medo), também se faz necessária essa "licença poética" da ficção em diversos aspectos. Mas, mesmo abraçando essa ideia, não significa que não seja possível pensar que haja uma certa lógica ou explicação racional para como as coisas acontecem na tela. Afinal de contas, conforme tentarei mostrar em minha interpretação, trata-se de um filme que, de fato, supõe um campo bastante amplo para as figuras poéticas: as alegorias e simbolismos mitológicos, os devaneios oníricos dos sonhos, conceitos de fundo filosófico e extrapolações de teorias físicas. O que não significa dizer que seja um amontoado de imagens inexplicáveis sem lógica alguma. 

Para finalizar essa introdução, nunca é demais avisar os desavisados que essa é apenas uma interpretação autoral. Ainda que eu me baseie em certa bagagem teórica, de minhas incursões acadêmicas na graduação em Física e pós-graduação em Filosofia, minha explicação é declaradamente subjetiva. Não espero, de modo algum, que se concorde com minha visão pessoal sobre o que o filme me parece estar dizendo. Mas, caso você, leitor, tenha sua própria teoria ou ache furos (que certamente deve possuir) na minha, sinta-se, então, mais do que convidado para comentar. 

Parte I

De antemão, aviso que  Triângulo do Medo provavelmente não é o tipo de filme que agradará aqueles que estão acostumados com finais fechados, isto é, filmes que explicam didaticamente tim tim por tim tim tudo o que querem transmitir, sem que seja necessária reflexão alguma de quem o assiste. 

Ó, leitor impaciente e aflito por respostas indubitáveis, nem tudo é matemática! Que mal há em de vez em quando fazer uma coceguinha no cérebro? 

De fato, temos aqui um filme instigante, daqueles que requerem persistência, análises minuciosas e, sobretudo, muita atenção. Não é por acaso que certos acontecimentos são apresentados de determinado modo e não de outro; eles acontecem tal como são porque há uma lógica por trás deles. Christopher Smith, o diretor e roteirista do filme, que desde já é uma promessa, convida-nos a desvendar as pistas desse quebra-cabeça em forma de filme. 

Não quero dizer que não se possa apreciar o filme sem um entendimento mais aprofundado. Ora, é justamente o contrário: é lindo ver os detalhes que o cineasta constrói; as referências filosóficas, estéticas, literárias; os belos travellings entrecruzando os corredores, que por vezes esbarram nas personagens de costas, quase como se fosse sem querer, por vezes as pegam bem de frente, como se as perseguisse em obsessão. 

A câmera perambula feito um rato em um labirinto, tal qual o labirinto mental de transtornos em que se encontra imersa a bela Jess, protagonista do filme. A ideia de um labirinto confuso parece mesmo confirmada pela sublime forma como a narrativa do filme o leva a uma espécie de refilmar-se a si mesmo no interior de seu próprio enredo; e isso por diferentes ângulos e enquadramentos, ou melhor, diferentes pontos de vista. 

O título “triângulo” refere-se ao famigerado Triângulo das Bermudas e as lendas em torno dele. Existe a suposição de que por lá as leis da física sofrem alterações, tendo-se em vista os diversos fenômenos anormais que acontecem naquela região: fala-se do não funcionamento de bússolas, de sumiços de embarcações e mesmo de aviões. É desse contexto que o filme parece vale-se, visto que em alto-mar – no Triângulo – estranhos eventos começam a acontecer sem quaisquer justificativas: o sumiço repentino do vento; as tempestades elétricas; e, por fim, o aparecimento de um novo navio, uma espécie de navio-fantasma, em cujo interior transcorrem os maiores devaneios da trama. 

Parte II

Uma vez que as leis da física não são plenamente respeitadas, minha teoria parte do princípio de que ali, em algum momento, houve uma distorção do tempo: mais precisamente o que os teóricos chamariam de "uma dobra", uma superposição da dimensão temporal sobre si mesma. Assim, o passado poderia se encontrar com o futuro (passado e futuro relativos, obviamente), o que explicaria, em partes, as desventuras de Jess.

Não se trata, contudo, de uma sobreposição circular; mas de uma espiral (no vocabulário de Leibniz), produzindo um paradoxo espaço-temporal com implicações no passar relativo do tempo. Os físicos contemporâneos chamariam o movimento resultante dessa dobra como movimento  helicoidal ou de uma função de forma helicoide. O que isso quer dizer em termos simples?  A ordem natural foi quebrada. 

Os acontecimentos, como se tivessem retornado no tempo, repetem-se, porém continuam a movimentar-se ainda assim no tempo. Classificá-lo meramente como ciclo é deveras reducionista. Ora, nota-se a multiplicação da matéria: os pássaros, os amuletos, os bilhetes e as próprias pessoas. Isso só seria possível se houvesse uma progressão linear (como o movimento retilíneo de uma linha reta), repetindo, ao mesmo tempo, a trajetória dos acontecimentos (como o movimento circular uniforme), compreendendo-se assim a definição do movimento helicoidal. 

Diferentemente do tempo, as referências ao “O Iluminado”, filme de Stanley Kubrick, são uma constante. O navio fantasma é o próprio hotel. Há nele inúmeras referências: os corredores, o quarto de número 237, o espelho, o machado, o fato de estar vazio, o fato de nele a personagem principal querer matar todos. Tantas referências não poderiam ser em vão. Penso que essa seja, talvez, a pista mais importante do filme, que sugere a insanidade adquirida pela personagem. Isso explica o que teria acontecido com a primeira Jess (até seu nome soa parecido com Jack do Iluminado, não?).

Eis o que aconteceu: após enlouquecer e matar todos, de alguma forma, por meio da distorção helicoidal do tempo, essa primeira Jess encontrou-se consigo mesmo no passado. Ao ver que ela mesma, no passado, não era tão boazinha com seu filho quanto se supunha, ela acaba por assassinar esse seu eu do passado. Vê-se aqui, pela forma com que tratava seu filho e pela forma a sangue-frio que matou seu eu-do-passado, o temperamento forte dela e o que ela é capaz de fazer. 

Gerou-se, assim, outro paradoxo: como ela pode ter voltado no passado e matado a si mesma se para voltar ela teria que primeiro ter ido. E estando ela morta antes de ter ido, não pode ter jamais voltado para se matar a si mesma no passado. Essa é a explicação que faz os fenômenos helicoidais de viagem no tempo tornarem-se, de certo modo, infinitamente "cíclicos", por assim dizer, em uma nova realidade que de certo modo é nova embora repita a antiga. Em outras palavras, uma espécie de eterno retorno inescapável. 

É importante ressaltar que esse ciclo não acontece apenas no navio; envolve desde a embarcação com os “amigos” até quando ela volta e opta por re-embarcar no barco. Essa é a trajetória do ciclo.

O mistério é: o que motiva Jess a retornar ao barco, e, por consequência, "ao ciclo", após ter voltado para casa? A explicação encontra-se em uma das cenas finais, em que Jess – por culpa do destino em sua sádica vontade divina, talvez – sofre um acidente de carro, no qual seu filho morre. Assim, movida por culpa e remorso (eu não diria amor), decide retornar ao ciclo propositalmente para que possa rever seu filho novamente. Daí Jess desculpar-se com o marinheiro, abraçando-o e pedindo-lhe perdão. 

Ele diz que não há pelo quê desculpar-se, mas ela sabe bem que terá de matá-lo se quiser rever seu filho. Ainda nesse princípio, quando questionada se de fato gostaria de ir na viagem, ela, de modo profundo, olha para as outras pessoas no barco, como se dependesse deles sua decisão. Afinal de contas, sabe que terá que matá-los também.

Parte III

Outro fator que deve ser considerado é a amnésia, proveniente do acidente de carro. Desde o início, quando entra no barco, Jess parece extremamente confusa. Não obstante, é somente após dormir que Jess não se lembra mais do ciclo, esquece-se de que já passou por tudo aquilo e assim acaba por repetir tudo da mesma forma – escrevendo o bilhete, deixando o colar cair, etc. Lembre-se de que, não à toa, Jess dorme por mais de duas horas no barco, também dorme na praia após conseguir retornar. Mostram-se pistas, a todo instante, que lhe sugerem que já estivera em tal lugar, por isso sua sensação constante de deja vu que ela repete diversas vezes.

Um questionamento que vi em muitos fóruns foi: de onde surgiram tantas Jess’s? Descreverei o trajeto, a partir do início, que, de acordo com minha teoria, melhor se encaixa. A primeira Jess, que maltrata seu filho, e chega a dizer que quer um tempo só para ela, decide ir viajar com os amigos e opta por deixar seu filho na escola ao invés de levá-lo. 

Como a Jess que nos é mostrada é uma já imersa no ciclo, duas são as possibilidades que explicam o percurso da primeira Jess: i) ou ela levou seu filho para a escola; ii) ou ela sofreu o acidente de carro e ficou atordoada, não se lembrando bem de onde deixara seu filho. Em qualquer caso, Jess embarca e, após a distorção do tempo no triângulo das bermudas, enlouquece no navio. Talvez precisamente por passar por essa distorção temporal, ou pela provável perda do filho no acidente. Assim, todos os rastros (por rastros, entenda-se: a chave, o colar, o bilhete, entre outros) são implantados, ainda que sem objetivo prévio. 

Mas nunca nos é mostrada a Jess original; a que conhecemos no início chamarei de 1ª Jess. Essa é a Jess que deixa os rastros para o segundo grupo, é ela a Jess que lança uma outra Jess para fora do navio. Esta, a Jess atirada para fora do navio, chamá-la-ei de Jess Anterior; essa é a Jess que atira nas pessoas do grupo da 1ª Jess, no teatro. É quem deixara os rastros para a Jess do 1º grupo, que por sua vez deixou inevitavelmente os rastros para o grupo da 2ª Jess, e assim sucessiva e progressivamente (pois a matéria é acumulada, como vimos). 

Os rastros para a Jess Anterior foram deixados pela Jess que lhe é anterior e ainda mais anterior que a 1ª Jess: é a Jess com sangue no rosto, da qual não sabemos toda a trajetória. Sabe-se, no entanto, que a Jess com sangue no rosto é quem assassina dois integrantes (o casal), no quarto 237, do segundo grupo. E a Jess do segundo grupo, isto é, a 2ª Jess, é aquela que ao invés de ser estrangulado por Victor, torna-se alvo da arma da 1º Jess, e se tornará também uma nova Jess com sangue no rosto, e, pela lógica, assassinará o casal apenas lá pelo 5º grupo a chegar, seguindo-se sempre essa sequência progressiva, repetindo-se renovadamente de modo implacável. 

Percebe-se, pois, que há uma ordem: Jess Com Sangue no Rosto > Jess Anterior > 1ª Jess (a que se mostra desde o princípio) > 2ª Jess > 3ª Jess. Aliás, o ciclo não se restringe ao navio, ao contrário do que talvez pense o espectador no momento em que assiste.

Tanto o nome do navio quanto o quadro em sua parede são referentes à lenda de Sísifu, um homem da mitologia grega condenado a carregar uma pedra montanha acima, só para vê-la rolar para baixo, repetidas e infinitas vezes. Tal castigo deve-se ao fato de Sísifu ter enganado a morte – justamente o que Jess tenta fazer para salvar seu filho, que, na verdade, morrera no acidente de carro. Talvez seja então a explicação para a realidade de punição cíclica alternativa, análoga à punição mitológica. 

O fato é que isso tudo pouco importa. Vale mesmo a diversão de tentar montar o quebra-cabeça que, sem desconfiar da capacidade do espectador, não vem com enfadonhas instruções detalhadas dos lugares de cada peça. 

- - -

Escrito por Marcelo Ferreira Jr
23 de Janeiro de 2011