Um respeitável senhor, gerente de banco, de cabelos curtos e grisalhos, um “fino” bigode é o perfeito símbolo do homem da elite. Um senhor admirável, diga-se de passagem, figura que não apenas carrega e recebe o reconhecimento de sucesso em seu trabalho, mas também com as mulheres, suas poesias, seduções que descartam sua figura e o torna em um galante e jovem apenas pelo poder de suas palavras, de seu beijo. Contudo, há nesse velho e admirável senhor, característica enfadonha e peculiar que acaba por interromper seu encontro com qualquer dama. Nos primeiros gestos, quando a bela senhora – entenda bem, senhora e não senhorita – estendem as mãos, ao invés de beija-las, simplesmente abocanha, as morde.
Saraceni, primeiramente, faz da obra de Carlos Drummond de Andrade um ritual de gêneros. Trata-se de um domínio poucas vezes visto no cinema nacional, apesar de ser categorizado unicamente como uma história “dramática”, pouco há de fato momentos que se focam unicamente em uma estrutura concreta. Desse modo, não existe imposições, estamos em um campo de pleno domínio de seu diretor, enquanto podemos livre e abertamente soltar gargalhadas, podemos sentir a angústia, a ternura e a tragédia peculiar que se desenvolve gradativamente durante o filme.
A narrativa de O Gerente(idem, 2011), casada inteiramente com a literatura é também essencialmente cinematográfica. Da narrativa minuciosa, que acompanhamos com Joana Fomm, senhora que observa e nos conta de tudo e a todos, em terceira pessoa, serve de escada para a câmera de Saraceni fluir naturalmente, assumindo posição objetiva/subjetiva a todo momento, quebrando a quarta parede a qualquer hora e qualquer instante para falar diretamente com o espectador, desconstruindo toda áurea tensa e tornando a narrativa de maneira despretensiosa, com diálogos formais que debocham (no bom sentido) de si mesma.
Aliás, é o cinema principalmente dos assuntos que Saraceni movem em sua linguagem fílmica em O Gerente. Sempre estamos em contato com o próprio, desde as citações (com direito a curtos trechos) de Chaplin até do cinema-novo – que se prova ser mais “novo” ainda com o passar dos anos -. Temos aí então, não somente um filme que desconstrói a lógica do que o espectador está acostumado a ver, mas também que assume sua posição constantemente enquanto obra cinematográfica, cujo conhecimento pertence ao admirável e invejável gerente de banco, o senhor Samuel (Ney Latorraca).
A atuação de Ney Latorraca inclusive é uma das principais responsáveis por essa dualidade e dilema criado por Saraceni. É Ney quem transforma naquele formoso homem, elegante, honrado em um pobre poeta marginal que em pouco tempo depois se vê se consumido por seu próprio vício/mania que cai na tentação do amor. Saraceni da vida ao nosso banqueiro junto com Ney Latorraca, transformando seu drama em comédia, sua comédia em tragédia, sua tragédia em romance. Afinal, não é disso que é feito o cinema?