Existiu um tempo em que filmes como “Do mundo nada se leva” podiam ser conhecidos do grande público através de sessões vesperais na rede aberta da tv. Antes que me critiquem por dizer que a pequena tela pode substituir a grande, quero já dizer que acho a tela grande insubstituível. Mas é necessário se lembrar que em uma entrevista no início da década de 80; Capra dizia que a televisão tornara o cinema desnecessário. Creio que o que ele quis dizer é que seus filmes não sofriam tanto com a passagem para a tela pequena, ao contrário de obras de outros diretores.
Bem falar de qualquer filme de Capra é tarefa das mais agradáveis. A primeira vez que assisti a esse filme foi em 1982 quando a Globo ainda possibilitava o conhecer essas obras antigas (ainda que na madrugada). Posteriormente assisti na tela grande, quando houve um festival dos filmes da Columbia que ganharam o Oscar.
Quando via a obra de Capra, dava-me uma sensação de que o mundo antigamente era melhor. Como se a idade do ouro da civilização tivesse existido. Acreditar que o passado foi melhor é algo característico do ser humano. Eu sabia que aquilo que assistia na tela fazia parte do imaginário de seu criador, mas era agradável imaginar que isso ultrapassava essas fronteiras. No que tange a obra de Capra creio que apesar de ser um diretor de estúdio, o que ele levou as telas nas maiorias das vezes, era algo em que acreditava. Época em que se pensava ser possível reformar o mundo através da arte. Não é de se estranhar que após a 2ª Guerra ele tenha realizado apenas uma grande obra (A felicidade não se compra). É como se ele deixasse de acreditar na bondade inata do seu herói, o homem simples americano. Afinal pode ele ver de perto, que em situações extremas esse homem também retornava a barbárie. E salta aos olhos que o vilão que se tornava em suas películas simpático com o desenrolar da trama (Anthony P. Kirby em “Do mundo nada se leva”) fosse tratado como um doente incurável posteriormente (o Sr. Potter de “A felicidade não se compra”). Note-se que para Capra quem é mal é “doente”. Nada mais cristã que essa idéia.
Esse filme talvez seja o que contenha em seu bojo todos os elementos tão caros a obra Capresca: O poder do dinheiro (criticado de forma amena nessa obra – notem que Tony boceja quando seu pai fala de sua grande jogada financeira); uma vida natural e simples em oposição aquela superior e sofisticada( materialmente falando); a família numerosa e unida (a placa de Lar, doce lar toda vez vai ao chão com a explosão das bombas no porão); o patriotismo (o diálogo sobre os “ismos” com o agente da Receita); os amores puros e a beleza feminina que exerce seu poder sobre o homem não corrompido; o espírito de quem descobriu a “fonte da juventude” e a carrega dentro de si, mesmo idoso (Vanderhof mesmo com a perna quebrada, transmite a energia de um menino a quem assiste o filme); a possibilidade de recomeço, não importa qual sua idade ( Poppins um homem já maduro, deixa sua rotina sem significado e mergulha na filosofia de vida dos Vanderhof, isso posto no início da película, já nos coloca a par do que a obra trará); a fé na assistência de Deus (Martin sempre agradece a Deus pela saúde que possui, quanto ao resto, fica pela “vontade divina”); a profissão de fé na solidariedade (a seqüência da mobilização dos “ vizinhos” para pagarem a fiança da família, quando a mesma é presa por obra de Anthony P. Kirby – ainda que ele desconhecesse) e a necessidade de amar e compreender seu próximo ainda que ele pense diferente de você (Vanderhof se desculpa por ter se exasperado e doa sua gaita a Kirby).
Ainda que em relação as outras obras de Capra ela pareça denunciar suas origens teatrais, devemos notar todo o talento de Capra para mascara-la : O encontro de Poppins e Vanderhof é filmado de cinco ângulos diferentes; na cena da prisão quando Martin repreende Kirby, Capra transgride os 180° em voga na época; durante todo o filme ele permite de planos longos, deixando assim os atores soltos para dispor de seus talentos naturais. Existe uma cena que é demonstrado todo o talento de Capra. Para ele os atores não precisavam mostrar seu rosto permanentemente. Quando Warner lança na cara de Kirby todo o seu desprezo pelo golpe que o arruinou, o ator é visto praticamente pelas costas. Toda a força dramática esta no gestual desse e na reação facial do estático Anthony P. Kirby. Quando em seguida ele recebe o telefonema e sobe o elevador, nós todos ainda estamos como que presos no que foi dito por Warner, o que torna crível a decisão de Kirby (Capra já se utilizara de tal expediente em “Aconteceu naquela noite”, quando ousa uma tomada com Gable sentado de costas falando ao telefone, ainda que o efeito ali fosse cômico).
Convém também comentar aqui o cenário. Capra teve aqui a felicidade de criar de maneira magistral o ambiente em que circulam os Vanderhof. Esse parece se expandir diante do lúdico que ali vive. Música, pássaro, fogos, ruídos mil (máquinas datilográficas, marteladas, campainhas. quadros que caem, assovios, etc) compõem de maneira natural a casa. Apesar de toda a confusão, tudo se harmoniza. Tudo cessa, somente quando eles rezam para agradecer o alimento. Esse mundo fica mais agradável quando notamos que ele apenas exterioriza, aquilo que vai no imo de Martin Vanderhof. Mundo esse que é o oposto do de Kirby. Ali somente sua voz é ouvida, tudo se cala e fica sem vida ao seu redor. O que choca é que nos lembramos que Vanderhof está limitado pelas pernas quebradas, e Kirby que é aparentemente livre, nos soa como algo estático. Vanderhof é sentimental e alegre, Kirby grave e mal resolvido. Esses dois personagens vivem um embate. Representam dois mundos que se contrapõe um ao outro.
Capra conseguiu realizar um filme fantástico e mais dos que nos demais filmes, fez dos cenários algo que contribuiu para o desempenho maravilhoso de todo o elenco (inclusive os figurantes – aliás, quantos rostos deles não nos ficam na lembrança). Uma verdadeira aula de cinema.