Quando o Medo, o Cômico e o Trágico se Encontram no Espelho do Cinema Jim Jarmusch, diretor conhecido por sua abordagem minimalista e freque...
Quando o Medo, o Cômico e o Trágico se Encontram no Espelho do Cinema
Jim Jarmusch, diretor conhecido por sua abordagem minimalista e frequentemente irônica, nos entrega em Os Mortos Não Morrem (The Dead Don’t Die, 2019) uma obra que desafia categorias simples. Sob o disfarce de um filme de zumbis, o longa é, na verdade, um exercício de metalinguagem cinematográfica e uma reflexão ácida sobre o fim do mundo – ou, mais precisamente, sobre nossa apatia diante dele. Ao misturar o cômico, o trágico e o absurdo, Jarmusch cria uma narrativa que tanto homenageia quanto desconstrói o mito do apocalipse zumbi, convidando o público a rir, temer e, acima de tudo, refletir.
Desde os primeiros minutos, Os Mortos Não Morrem deixa claro que não pretende seguir as convenções típicas do gênero. A trilha sonora, composta pela música-título “The Dead Don’t Die” de Sturgill Simpson, é repetida exaustivamente ao longo do filme, tanto dentro da diegese quanto fora dela. Em uma das cenas mais emblemáticas, o personagem de Adam Driver, o policial Ronnie, comenta casualmente: “Ah, essa música? É a música-tema do filme.” Essa quebra da quarta parede não é um artifício isolado; é um elemento fundamental da metalinguagem que permeia toda a narrativa.
A Quebra da Quarta Parede e a Metalinguagem Fílmica
Os diálogos dos personagens frequentemente fazem referência ao próprio roteiro, como quando o personagem de Bill Murray, o xerife Cliff, questiona a aparente onisciência de Ronnie, que responde com um simples: “Eu li o roteiro.” Esses momentos não apenas subvertem nossas expectativas sobre o que um filme de zumbis deveria ser, mas também nos lembram constantemente de que estamos assistindo a uma construção fictícia. Jarmusch, ao expor os “bastidores” do cinema em plena narrativa, nos força a questionar a própria lógica das histórias que contamos – e, por extensão, a lógica do mundo que habitamos.
No coração de Os Mortos Não Morrem está uma tensão entre o cômico e o trágico, que se manifesta tanto nos eventos absurdos da trama quanto na performance dos atores. O tom impassível dos personagens diante do apocalipse – a frieza com que observam a lenta ascensão dos mortos – cria um efeito de humor negro que, ao mesmo tempo, carrega uma carga de angústia existencial. Quando os zumbis começam a atacar a pacata cidade de Centerville, os personagens reagem com uma estranha mistura de aceitação e indiferença, como se o fim fosse inevitável e já esperado.
Uma Equação Existencial
Essa indiferença, no entanto, não é gratuita. É uma crítica direta à apatia da sociedade contemporânea diante das crises globais – mudanças climáticas, desigualdades sociais, consumismo descontrolado –, que no filme são explicitamente associadas ao apocalipse. A menção frequente ao “deslocamento polar” como causa do caos é ao mesmo tempo uma piada e um comentário sério sobre o impacto humano no planeta. O riso gerado por essas situações é amargo, pois revela o quanto nossa capacidade de encontrar humor no desastre anda lado a lado com nossa incapacidade de agir diante dele.
O trágico, por sua vez, emerge da constatação de que, no fundo, ninguém está realmente preparado para enfrentar o fim. Os personagens, presos em seus hábitos e preocupações mundanas, continuam vivendo como se tudo fosse continuar igual, mesmo quando os mortos já estão literalmente à sua porta. Essa mistura de medo e resignação é o que torna o filme tão perturbador: ele nos força a encarar nossa própria passividade diante do inevitável.
Zumbis Como Reflexo da Humanidade e Símbolos do Vazio
Os zumbis em Os Mortos Não Morrem não são apenas monstros sedentos por carne humana; eles são, como em muitas obras do gênero, reflexos de nós mesmos. Mas Jarmusch vai além ao dar aos mortos uma característica peculiar: eles continuam repetindo ações ou palavras associadas às suas vidas anteriores. Um zumbi murmura “Wi-Fi” enquanto cambaleia, outro clama por “Café”, e há até um grupo obcecado por Chardonnay. Esses detalhes adicionam uma camada de ironia mordaz ao filme, transformando os mortos em caricaturas de nossos próprios vícios e obsessões.
O consumismo, em particular, é um alvo claro da crítica do filme. Os zumbis vagam pela cidade em busca das mesmas coisas que buscavam em vida, sugerindo que, mesmo na morte, estamos eternamente presos ao vazio existencial da sociedade de consumo. É uma visão profundamente cômica e, ao mesmo tempo, desesperadoramente trágica: a ideia de que, mesmo após o fim, somos incapazes de escapar das estruturas que nos definem.
A Tragédia do Apocalipse como Rotina
Talvez o aspecto mais surpreendente de Os Mortos Não Morrem seja sua recusa em transformar o apocalipse em algo espetacular. Não há grandes explosões, perseguições frenéticas ou momentos de heroísmo. O fim do mundo é tratado como algo banal, quase entediante, e os personagens navegam por ele com a mesma monotonia com que enfrentariam um dia ruim no trabalho. Essa abordagem minimalista – e, para alguns, frustrante – é, na verdade, uma declaração poderosa: o apocalipse não será um evento grandioso, mas um desmoronamento lento, marcado mais pela incapacidade de agir do que por qualquer grande confronto.
Essa banalidade é reforçada pela direção de Jarmusch, que mantém um ritmo deliberadamente lento e diálogos minimalistas, quase mortos-vivos por si só. O filme nos desafia a encontrar significado nesse vazio, a rir da absurda normalidade do fim e a reconhecer que, muitas vezes, o trágico e o cômico não são opostos, mas lados da mesma moeda.
A Última Piada: O Fim Inescapável
Ao final, Os Mortos Não Morrem não oferece respostas ou soluções. O apocalipse é inevitável, o ciclo de consumismo continua, e os personagens, mesmo conscientes de sua própria ficcionalidade, não conseguem escapar de seus destinos escritos. É uma conclusão que reflete não apenas a estrutura metalinguística do filme, mas também sua visão sombria do mundo real. O riso que Os Mortos Não Morrem provoca é, no fundo, um riso nervoso – o riso de quem sabe que, como os personagens, estamos apenas nos movendo lentamente em direção ao inevitável.
Jim Jarmusch, com sua mistura única de humor negro, crítica social e metalinguagem, nos oferece um filme que é menos uma história de zumbis do que uma meditação sobre o absurdo da existência. No fim, talvez a mensagem seja clara: os mortos não morrem – porque, de certa forma, já estamos mortos, presos em nossos próprios loops de apatia e vazio.