Não é a primeira vez que escrevo que originalidade é um mito. Todas as histórias já foram contadas, o que nos prende a um determinado espet...
Não é a primeira vez que escrevo que originalidade é um mito. Todas as histórias já foram contadas, o que nos prende a um determinado espetáculo é o talento de que se vale o artista para que a ouçamos novamente. Tudo é fruto de associações de ideias, poucos tem o dom de saber costura-las com maestria.
Aqui estamos diante de um filme que se arvora principalmente em dois livros distintos, escritos faz muito tempo e que alguns os tem a conta de ultrapassados. Primeiramente, o livro de Jó do antigo testamento, narrativa judaica que possui uma atualidade e profundidade que à primeira vista não enxergamos. Tomar o texto como algo santificado, estático, como extensão da palavra de Deus é uma tolice que não irei cometer. O bonito e importante no relato é justamente o esforço daqueles que o escreveram para buscar compreender Deus. Os sábios judeus dizem que o texto definitivo que nos chega em mãos hoje é um trabalho coletivo. Escrito em várias épocas, por homens que acreditavam poder buscar a compreensão do divino. O Livro aproveita-se de uma lenda sobe um homem chamado Jó e foi provavelmente escrito durante o Cativeiro da Babilônia ou após ele. O que se questiona na sua narrativa é como explicar que um povo que cultuava Deus pode ter sido escravizado por um outro. Onde a Justiça? Ao invés de se voltar contra Deus, os teólogos judeus buscavam refazer o seu entendimento sobre o ente divino. Mesmo espoliado de todos os pertences, sabiam eles que Deus existia e o que lhes faltava era uma compreensão do todo. Era preciso repensar aquilo que já se julgava sabido.
O outro livro é Leviatã de Thomas Hobbes. Nele seu autor faz uma reflexão sobre a teoria do contrato social. Hobbes era um estudioso da soberania e das condições que o Estado poderia exercer, para ser a solução para todos os conflitos sociais, e conceituou assim o Leviatã em toda da ideia que o Estado deve satisfazer a sua autoridade para impor a segurança e a paz a todos os indivíduos, portanto nós devemos renunciar a uma parte de nossas liberdades individuais que gozávamos quando no estado da Natureza. O interesse do diretor ao se referir a essa obra inflexível, mais crítica, é de procurar situar a Rússia coeva, dentro de uma ligação de forças desequilibradas que tomam lugar entre a esfera política e a vida privada de seus moradores.
Leviatã, a besta marinha citada no Livro de Job, que fazia parte da criação, e a besta política e social de Hobbes, se jungem numa só narrativa.
O Job de nossa história se chama Kolya. Ele simbolizaria o povo russo. O justo que sofre. O povo russo sofreu sobre o domínio de uma nobreza insensível e alheia e com a Revolução bolchevique com a sua fantasia de Ditadura do Proletariado tudo se acentuou. A recente Democratização do país também não trouxe alento. O povo russo permanece sendo crucificado permanentemente. E se nós aceitarmos que a bebida é muito consumida devido as baixas temperaturas, ao gélido que enfrentam, não nos enganamos. Eles encontram na bebida um lenitivo, uma válvula de escape contra as intempéries e também contra um estado de coisas que não pode ser mudado. Um sistema frio e distanciado. O diretor russo propõe que a Igreja Ortodoxa outrora perseguida e apenas tolerada, ao se ver novamente no cenário, ao invés de se manter firme nas supostas posições que a mantiveram ligadas ao povo russo, tem seu interesse voltado em adquirir um importante peso político e econômico na nova ordem que se estabelece.
O filme, embalado pela trilha sonora de Philip Glass, junge perfeitamente as imagens com a música, ganhando ares operísticos de uma tragédia anunciada. A enseada da baia do mar de Barents, norte da Rússia e a cidade ali localizada lhe servem de cenário. A cidade será o símbolo da própria Rússia. Um país gangrenado pela corrupção. Um gigante tombado pelos rumos tomados pela história. O esqueleto da baleia que jaz na praia retrata bem a ideia de engessamento que o diretor nos mostrará. A própria fotografia que prima por uma luminosidade opalina, ajuda a criar o clima de opressão que dominará a narrativa. Muitos irão criticar a obra, a chamarão de rígida, muito formal, ressentida de poesia, distanciada, etc. Esquecem-se que tem como alicerce, uma narrativa bíblica, que também era impositiva. Uma daquelas obras que buscam despertar a consciência de quem assiste, levar a reflexão, ao invés de procurar nos levar a catarse. Eu diria brechtiana. O roteiro constrói um afresco épico sobre um destino épico, emblemático e contemporâneo. A mise em scène é fulgurante e reiterada, visando conduzir nossa atenção para o todo, não nos deixando prender a detalhes. Ficamos estupefatos pelo que nos é revelado, até que chegamos a revelação final que nos alivia por nos revelar o que jazia escondido, e ao mesmo tempo nos deixa estarrecido diante de algo que nos surge como intransponível.
A dramaturgia, toda anedótica, atinge não somente o universal, mas também o metafisico. A importância da religião (no sentido moderno, não primeiro da palavra), pela interação entre o eclesiástico corrompido e o padre da paróquia, conduz a um discurso final do primeiro fazendo figura de oximoro, entre sua pregação e o que ele dizia de uma teologia rasa, simplória, nos seus colóquios com o prefeito anteriormente.
O Leviatã é a praga fatal dos regimes criados pela besta homem, gangrenados pela cobiça e a sede do dinheiro que domina o mundo, em detrimento dos povos, da coletividade. Um filme grandioso, que merece ser conhecido não somente pela maestria de sua direção e interpretações, mas também pelas belas imagens que mesclam o sofrimento dos personagens à uma natureza que parece espelhar isso. Certamente crescerá a cada visita essa obra acre e oportuna que vem da Rússia.
Escrito por Conde Fouá Anderaos