Desde já peço desculpas, e também explico, ao pequeno número de generosos seguidores que vez ou outra deitam os olhos nos meus escritos. Es...
Desde já peço desculpas, e também explico, ao pequeno número de generosos seguidores que vez ou outra deitam os olhos nos meus escritos. Escrevi com a pena da emoção dois textos (ou tentativas de escritos) sobre essa obra. Tentei unir ambos num texto só. Acabei por desistir. Talvez pelo motivo de que ao iniciar, fiquei com dó de amputar um ou outro. Um deles nem mesmo tinha findado, quando resolvi escrever o outro. São curtos, mas mostram tentativas de se entender a obra. Não tive coragem de me desfazer de um ou outro. Filhos queridos que não consegui que amadurecessem.
I
Por muito tempo fiquei com várias imagens desse filme me visitando de maneira insistente. Revendo-o em DVD, ao fim de projeção, decidi finalmente deixar de lado as dúvidas e incertezas e deixar que as impressões tinjam a tela branca (ou preta) do Microsoft Office Word do qual me utilizo para a escrita. É sim uma obra marcante, talvez o melhor filme de seu ano. Uma produção independente que rompeu barreiras e entrou na festa de vários festivais inesperadamente. Logicamente que o fato de não arrebatar nenhuma estatueta no Oscar e de ter sido esnobado a incrível interpretação de Dwignt Henry (pelo simples fato de não ser um ator profissional) não o diminui, ao contrário, o agiganta. Foi um grande feito. Aliás quem é esse Benh Zeitlin? Terá ele noção exata da obra que concebeu? Realizar no berço do tio Sam uma obra de tal envergadura, criticando o American way of life que hoje se estende de forma mais nítida por todo o planeta. Não uma crítica pautada num discurso marxista, com seus diagnósticos até que precisos e soluções ritualísticas (Acreditar que uma Revolução que culminará numa Ditadura do Proletariado resolverá nossos problemas é tão absurdo como crer na inocência de Stalin ou Hitler). O filme se vale de um texto poético, que se arvora numa constante construção de imagens e sons direcionados ao nosso coração. Sim é verdade, o filme exige que nos deixemos levar, nos conduz a catarse, ao pathos. Finda a projeção é hora de racionalizar o que vimos. Que haja a necessidade de se mergulhar novamente na película? Perfeitamente aceitável. Ai que o filme ganha diante de meus olhos o status de revolucionário. A banheira onde eles vivem não é um paraíso. Só que nossas metrópoles também não o são. Sim, o pai age de forma rude, inflexível, mas sabemos que ele ama sua filha e deseja que ela sobreviva e seja feliz. Ele jamais chegaria ao ponto de espancar a criança com uma cinta sem lhe dar qualquer chance de revide. O amor é expressado de maneira um pouco atrapalhada, mas existe. A Civilização, o Estado que os esqueceu aparece no local. Na forma da bebida sempre presente. Que mundo é esse que nega tudo, menos o direito do homem se alienar mais??? Estado ausente? Balela. O Estado está presente em sua ausência. Ele assiste a todos, desde que não incomodem seu mecanismo. Típico exemplo do filme que tem um discurso bem mais profundo do que aparenta. E se vale da forma poética para que repensemos o mundo que estamos construindo. E que traz em seu bojo muito mais do que imaginamos em uma primeira visita. Sim um filme que crescerá a cada revisão. Merece ser conhecido.
II
“Num curso de água pantanoso no estado da Louisiana existe uma comunidade isolada alcunhada de “A Banheira”. Nela vivem vários moradores, entre eles, uma menina de 6 anos e um homem (o pai dela) rude e de saúde frágil chamado Wink. Na escola a criança aprende como sobreviver num mundo hostil. Conhecimentos que serão colocados em prática quando uma tempestade surge, a água sobe e o vento devastador tudo piora. Passada a procela pai e filha partem em busca dos sobreviventes. Nesse momento imagens de uma manada de Auroque que jaziam presos no gelo no Ártico se mesclam aquelas da realidade através do olhar e da imaginação da garota.”
No meu entender o filme não deixa de ser uma versão moderna de A Jangada da Medusa, de Théodore Gericault; os temas aqui tratados se assemelham aqueles da obra do século XIX: Um Estado que deixa ao abandono aqueles que o serviram e lhes pede fidelidade. Logicamente que tal tema serviu de base a várias outras obras e o que conduz a empreitada ao sucesso ou não são as decisões tomadas pela equipe de produção e seu capitão (no caso aqui Benh Zeitlin).
A decisão de se valer da poesia desde os primeiros minutos traga o espectador para dentro de seu vórtice. Filme estranho, carregado de símbolos, um verdadeiro corpo estranho dentro da filmografia americana, tratando de temas indigestos e o escancarando nas telas de uma forma sutil e inteligente. Caso a obra não seja compreendida em todo o seu alcance, credite-se isso primeiramente ao intelecto restrito de alguns ou a falta de sensibilidade de outros. Zeitlin supre a falta de coordenação intelectual, buscando costurar os pedaços de seu discurso com muita sensibilidade e emoção. Escolha sensata, já que é difícil romper as amarras de uma educação heterônoma que solidifica o ser humano a não pensar. Os detratores do filme dirão que optou-se por algo demagógico, piegas, conduzindo quem assiste a emoções baratas e não articulando bem as críticas contra um estado injusto das coisas. E também desdenharão dos prêmios que o filme arrebatou ao redor do mundo vendo nisso a prova de que a obra se rende ao sistema estabelecido. Será uma mescla de ambos o que irá compor o discurso dos insatisfeitos. Mas eles não conseguirão impedir que a obra permaneça instigando e incomodando.
O filme seduz devido a linguagem poética desprendida a cada instante. Os jogos de sombra e luz nos aquietam, a musicalidade não cessa de nos trazer emoções a flor da pele e seus atores facilmente nos colocam com um nó na garganta. Isso parece insignificante? Quem não viu o filme está bem longe ainda de toda a verdade ao ler isso. Debaixo de seus ares de conto da carochinha para crianças, surge um poderoso discurso de um tema delicado, indigesto e profundo. Crescendo numa realidade onde lhe é apontado desde o início que isso tem de ser superado, mesmo quando a margem, a jovem Hushpuppy nos convida a partilhar de seu olhar, visitar seu mundo... Começando por seu pai, que deseja que ela seja forte, uma guerreira, ainda que para isso ela tenha de o odiar. – Odeie-me filha, isso é para seu bem! Esse relacionamento onde a menina não deseja mais que um abraço e um afago do pai emociona. Ainda mais pois isso preocupa o pai. Isso demonstra fraqueza e em breve ele não estará mais presente para a ajudar. Trata-se de uma das mais belas histórias de amor retratadas pelo cinema nesse milênio. Culminará com o duelo de lágrimas ao final. Jamais descambará pela intransigência de uma agressão animalesca contra seres indefesos (refiro-me ao pai que agrediu a filha de 3 anos com uma cinta sem piedade nenhuma).
E os Auroques nisso tudo???? Que as coisas fiquem clara, servem para rechearem o aspecto fantástico e semear em nosso espíritos o mistério. são um símbolo de um rito de passagem, do amadurecimento (aqui forçado) da protagonista. O enterro viking ao seu término remete a fala final (de uma forma mística) de Ma Joad em "As Vinhas da Ira" (1940): Os ricos surgem e morrem, e os filhos deles não prestam e desaparecem. Mas nós continuamos sempre. Somos os que sobrevivemos. Não conseguem acabar conosco. Não nos podem esmagar. Vamos continuar sempre, pai, porque somos o povo.
O povo jamais deixará de existir, visto que é ele que mantém a humanidade em pé. Não é verdade? Mensagem otimista que não visa a acomodação. É importante que resistamos para melhorar as coisas. A morte não deixa também de ser vista como um rito de passagem.
Escrito por Conde Fouá Anderaos