De Asghar Farhadi só vira o seu premiadíssimo “A Separação”. Filme que por si só basta para escantear para bem longe o estereotipo que nos é bombardeado pelo cinema comercial como um todo em relação ao oriente e ao povo que lá vive. Infelizmente são poucos que se aventuram a buscar entrar em contato com a cultura do outro, buscando-a compreender e não a submeter a sua visão do mundo. Desde que me apaixonei por cinema, sempre ir ver filmes dessa espécie era uma aventura que demandava tempo e paciência. Tinha de sair de meu bairro na periferia e “viajar” até o nicho onde eram exibidos. Todos distantes infelizmente. O crescimento da cidade e o inserir de minha localidade de moradia dentro de um novo contexto não serviu para melhorar muito a situação. O transporte hoje é mais farto, os cinemas se aproximaram (infelizmente aqueles que não abrem espaço para esse tipo de filme), e se a distância diminuiu, o número de cine clubes definhou em São Paulo. Ou seja, para se ver filmes como esse tem de se ir até os arredores da Avenida Paulista. Não tem jeito. O que me aborrece não é ir até lá, muito pelo contrário, é notar que o abismo cultural parece ter aumentado nesses anos. Não se quer instruir, pretende-se sim cada vez mais dotar todos de uma educação e cultura rasa. Querem amealhar-nos ao invés de nos darem condições para que nos libertemos e nos capacitemos com a descoberta de nossas potencialidades.
Saber que Asghar Farhadi resolveu ir até a França produzir seu novo filme causou-me certa preocupação. Ainda que a França possua hoje uma população onde os muçulmanos e seus descendentes constituam um contingente que não pode ser desconsiderado (daí o recrudescimento das ideias nacionais socialistas em seu solo). Ainda assim isso por si só não bastava para diminuir minhas dúvidas quanto ao que ocorreria com ele. De que forma isso influenciaria a sua arte. Que concessões o diretor teria de fazer a nova pátria? O resultado por si só calou-me. O talento permaneceu ali e o lidar com uma nova língua, um novo habitat, não o diminuiu em nada. Aliás, “A Separação” era também um filme de caráter universal. A dor, os sentimentos, os seres humanos são sempre os mesmo em qualquer lugar. E Farhadi é dotado dessa capacidade de desnudá-los de uma forma tão simples e profunda que só conhecendo essa suas duas obras o posso colocar no rol dos maiores cineastas em atividade no momento.
“Após quatro anos de separação, Ahmad(Ali Mosaffa) chega a Paris oriundo de Teerã, chamado por sua esposa francesa para assinar os papéis do divórcio. Durante sua curta estada, Ahamd descobre a relação conflituosa que Marie (A ex esposa vivida por Bérénice Bejo) tem com a sua filha. Os esforços para ele compreender a nova situação e o que ocorre acabam levantando o véu que cobria vários segredos".
Não existe no cinema atual um cinema mais inteligente que o do diretor iraniano. A sua grande virtude, a sua ciência do desnudamento da alma humana nos subjuga facilmente, já que ela se junge a uma deslumbrante e perfeita direção de atores e uma multiciplidade de perspectiva sobre os temas a serem tratados. “O Passado” se arvora sobre o desenvolvimento de uma história que nos soa até simples, mas cujas ramificações são complexas e diria mesmo rebuscadas, cheia de nuances delicadas e imperceptíveis a primeira vista. O filme se concentra no estudo de um sentimento, no caso aqui, no da culpa. Todos os que surgem a tela, são culpados ou não? Marie é culpada de querer pela terceira vez se unir a um homem, ainda mais sabendo que a esposa dele se encontra em coma? Samir é culpado de ter cometido o adultério, mesmo ciente do estado de depressão da mãe de seu filho? Ahmad é culpado de ter desistido de se adaptar a vida francesa abandonando Marie? Lucie é culpada de ter se intrometido no relacionamento de sua mãe? Fouad, mesmo criança, é culpado de se assustar com o estado vegetativo de sua mãe?
Farhadi não nos responde. Ele coloca as questões e só. A inteligência de sua obra é que essas questões, esses segredos nos são desvendados ao poucos, as chaves que nos permitem entender a intriga nos vem de forma homeopática. E cabe a cada qual que vê a obra se inserir dentro da problemática e perceber como é complexo fazer um julgamento. O comportamento dos personagens frente às novas descobertas encontra eco na forma como vamos os ver. As descobertas ocorrem simultaneamente para nós e eles. E isso nos intriga do começo ao fim. Não sabemos onde o barco irá aportar.
O elenco como um todo é impecável. E note que se trata de um elenco internacional nas mãos de um diretor que até então só filmara no oriente. E a Paris retratada por ele não seria a Paris retratada por vários outros diretores não naturais a cidade e a França. Ele não cai no pecado de mostrar uma Paris conhecida. A França serve de cenário para se contar uma história universal. E o elenco como já disse está irreprensível. A argentina Bérènice Bejo cria com desenvoltura e naturalidade uma mãe sem sorte nos relacionamentos amorosos, parecendo carregar nas costas bem mais do que pode. A belga Pauline Buel dá vida a filha que vive atormentada por uma atitude mal dimensionada e é o ser que causou a maior ruptura nessa família desestruturada. Papel complexo que a atriz leva como se fosse uma veterana. O iraniano Ali Mosaffa é também como o alter ego do cineasta. O personagem mais equilibrado e que tenta desvendar e reorganizar o seu antigo núcleo familiar. É através dele que iremos conhecer os demais personagens. Personagem paciente, sincero e atencioso que nos faz mergulhar no mar de segredos que serão desvendados. Tahar Rahim um francês de origem argelina dá vida ao amante e futuro marido de Marie. Um ator excelente que tem a meu ver de criar e dar vida ao personagem mais complexo de toda a trama: Calmo, mas atormentado pelo caminho tomado. E há o pequeno Elyes Aguis que faz o papel de Fouad. Nenhum personagem me tocou tanto quanto ele. Pequeno, trazendo em si as marcas deixadas pela separação dos pais e também aquelas da construção não certa de um novo lar. Acuado, revoltado, assustado, sem saber o que ocorre e como deve se comportar é o papel mais comovente dessa história.
Asghar Fahardi ao que parece veio para permanecer no panteão da sétima arte. E possui o potencial para nos presentear nos próximos decênios com obras muito maiores. Mas se elas forem do quilate das duas últimas já estaremos presenteados por uma das mais ricas filmograrias da história do cinema. Em cada tomada ele parece conhecer o tempo e o timing perfeito de cada um do elenco para que ele permaneça na tela o tempo necessário para se imortalizar. Farhadi é o Midas moderno da sétima arte. Longa vida a ele, mas, sobretudo as suas obras.
Escrito por Conde Fouá Anderaos