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Ran (1985)

Das maiores injustiças do mundo foi Akira Kurosawa ter vivido “apenas” 98 anos. E pior, eu diria até que ele nasceu na época errada. É tão...

Das maiores injustiças do mundo foi Akira Kurosawa ter vivido “apenas” 98 anos. E pior, eu diria até que ele nasceu na época errada. É tão injusto um ser humano que sabia trabalhar tão bem as cores ter realizado a maioria de seus filmes em preto e branco. Mesmo com belas fotografias, seus filmes dos anos 1950 e 1960 não têm o charme de Ran (idem, 1985). Com estética primorosa e uma direção de fotografia impecável– meu Deus, o que é aquela cena em que o sangue jorra na parede? –, Ran é um dos filmes mais bonitos já feitos.


Adaptação da obra Rei Lear, de William Shakespeare, Ran conta a história de uma tragédia provocada por ciúmes, traição e cobiça, tudo dentro de um só clã. Já em sua bela cena de introdução, uma caçada a javalis, Kurosawa apresenta a família Ichimonji. Outrora grande líder e agora um velho se aproximando da senilidade, Hidetora (Tatsuya Nakadai), resolve se retirar de suas atividades e passar a liderança do clã para o filho primogênito, Taro Takatora (Akira Terão), causando desconforto entre os irmãos Jiro Masatora (Jinpachi Nezu) e o rebelde Saburo Naotora (Daisuke Ryu), que não se conforma com a decisão do pai. Após uma árdua discussão, Saburo é deserdado e foge.


Logo as divergências minam a liderança de Taro. O próprio Hidetora não respeita o comando do filho, que se deixa levar pelos conselhos vis de Lady Kaede (Mieko Harada), sua esposa. Insatisfeito por ter que se reportar ao irmão, Jiro planeja lhe roubar o trono e tomar Kaede para si. Após intrigas causadas por seus soldados e pela esposa de Taro, Hidetora é expulso pelo filho mais velho e procura asilo no castelo de Jiro, que também lhe nega abrigo. Mesmo tendo sido deserdado, Saburo parece ser o único a ainda se importar com o pai.


O jogo de traições apimenta a disputa pelo poder entre irmãos. Nenhum personagem cede espaço a outro, mas o verdadeiro destaque fica por conta de Lady Kaede. Com falas sutis que envenenam a mente dos homens a sua volta, a jovem que busca por vingança se insere nos bastidores das batalhas e causa a discórdia no clã de diversas maneiras.

O roteiro se mantém em alto nível durante as mais de duas horas e meia de filme, revelando aos poucos as verdadeiras intenções dos antigos personagens e apresentando novos, que também serão importantes para o desfecho final. As reviravoltas constantes dão o tom dramático necessário à história, criando o cenário ideal para a tragédia cada vez maior que se aproxima. Explorando o ambiente familiar e a pressão que há sobre grandes líderes, Kurosawa mostra as dificuldades que o poder traz, principalmente quando o grande líder não pode contar com o apoio nem de sua própria família.

Shakespeare sabia escrever como ninguém tragédias. Com requintes de crueldade então, ninguém alcançou o seu nível de sadismo com os personagens. É interessante perceber que os próprios personagens de Ran clamam contra os céus, falando das desgraças que vivem e blasfemando contra aqueles que tomam as decisões divinas, sejam eles deuses, Shakespeare ou Kurosawa.


De longe a obra de Kurosawa mais ambiciosa – demorou mais dez anos para ser concluída –, Ran conta com cenários imponentes e grandes batalhas envolvendo diversos atores e figurantes. Temos longos planos gerais destacando a figura diminuta do homem diante de imensas paisagens, além de cenas de batalhas com planos aproximados, trazendo a confusão da luta para o espectador. O ambiente parece também ser um personagem da trama. O vento e a chuva acariciam os vastos campos, os céus coloridos ajudam a trazer impacto às cenas panorâmicas, ou até mesmo àquelas em que os personagens dialogam em topos de montanhas, com planos baixos, valorizando o céu ao fundo.

Em aspectos visuais, tudo é grandioso em Ran. Não é a toa que o filme recebeu o famigerado Oscar de Melhor Figurino, sendo ainda indicado aos prêmios de Melhor Direção de Arte e Melhor Fotografia. Nessas categorias perdeu para o multivencedor Entre Dois Amores (Out Of África, 1985), daquelas obras soníferas e burocráticas que a academia ama tanto.

Ran mostra que a construção de um reino em cima de guerras sangrentas é um caminho perigoso. Feridas não cicatrizadas de outrora servem de base para que antigos inimigos, que já estavam prontos para selar a paz, agora se rebelem internamente. O jogo político transcende para o campo de batalha através de estratégias inteligentes que decepam os menos astutos.

Praticamente 30 anos depois, contando uma história imensamente mais antiga, o filme de Kurosawa se mostra atemporal. A política que corrompe, a família desestabilizada por ciúmes entre irmãos e decisões irremediáveis tomadas sem certo cuidado. Questões assim permeiam o nosso cotidiano. Sorte que nossas batalhas são bem menores, mais internas do que externas e, na maioria das vezes, as coisas não acabam com sangue espirrado na parede.


Giancarlo Couto