“Eles queriam ver o que acontece quando eles destroem o mundo” Um mês após o ataque ao World Trade Center, em 11 de Setembro de 2001, uma fi...
“Eles queriam ver o que acontece quando eles destroem o mundo”
Um mês após o ataque ao World Trade Center, em 11 de Setembro de 2001, uma ficção sobre o potencial transformador de pequenas catástrofes chegou aos cinemas americanos. No enredo, um adolescente perturbado escapa à morte enquanto um motor de avião cai do céu atingindo justamente o seu quarto. Após o incidente, ele começa então a ter visões com um coelho grande, que em vez de apresentar fantasias lúdicas ou lhe trazer ovos de páscoa, o envolve em presságios sombrios e criminosos. O medo e a desconfiança que permearam em função do dramático episodio das torres gêmeas acabou por boicotar a estreia do filme Donnie Darko, mas a palavra do boca à boca chamou a atenção do Teatro Pioneiro (Pioneer Theatre) de Nova Iorque, que insistiu em exibi-lo por dois anos. Talvez por tudo isso a antipatia prévia ao filme foi dando lugar à catarse. Logo as vendas de DVD's dispararam e a mais nova geração de filmes soturnos da meia-noite começou a decifrar enigmas em plena luz do dia.
Embora o roteiro do diretor Richard Kelly trabalhe com questões filosóficas (e saiba o leitor que, por dever do ofício, eu não uso essa terminologia em vão) e se valha de referências que vão da Bíblia a Alice no País das Maravilhas, ele também constrói um universo singular e complexo. A princípio, a ideia era responder apenas parte do quebra-cabeça narrativo, mas três anos depois um novo corte trouxe as peças que faltavam. A reedição inclui algumas cenas adicionais e revela na íntegra os doze capítulos do livro fictício The Philosophy of Time Travel, escrito por Roberta Sparrow. Seu conteúdo, no qual se baseia esta análise, amplia uma lógica interna até então desconhecida do público, além de explicar o que ele viu nas salas de cinema. Desse modo, tanto o conflito central em Donnie Darko (2001) quanto seus dilemas morais foram ressignificados, porque, afinal, quem poderia imaginar que a ordem emergiria da destruição?
ATO I: 2 DE OUTUBRO DE 1988
Sparrow inicia seu livro discutindo o conceito de tempo. Diz tratar-se de uma construção estável, mas não impenetrável, em suas palavras. Definição mais ou menos aceitável para seus propósitos, embora seja evidente que a autora parece apenas suspeitar como um vestígio muito tímido da elaborada discussão metafísica-transcendental do conceito de tempo na Crítica da Razão Pura de Kant. Mas para sermos justos, entenda-se que por "uma construção estável" a autora refere-se à uma forma estética, intuição pura a priori; e por afirmar não ser "impenetrável" é provável que ela queira dizer se tratar, para todos os efeitos, da condição de possibilidade da sensibilidade humana, pois ainda que não responda pelos fenômenos da realidade, é condição de possibilidade da experiência enquanto tal.
Mas retornemos ao Donniezinho. Importa aqui a afirmação tomada da autora de que, sendo o tempo a quarta dimensão, caso essa quarta dimensão seja quebrada, o ambiente em que vivemos, o chamado Universo Primário, será substituído pela realidade paralela do Universo Tangente. A ocorrência desta anomalia é indicada pelo aparecimento de um artefato de metal em circunstâncias misteriosas, mas sua existência não ultrapassa algumas semanas.
No início da história, os personagens estão na linha do tempo do Universo Primário, em 1º de outubro de 1988, então, da noite para o dia, o jovem Frank, vestido de coelho gigante, leva Donnie a um campo de golfe para alertá-lo da iminência de um possível apocalipse em 28 dias 06 horas 42 minutos e 12 segundos. Enquanto isso, um motor abre uma fenda no espaço do futuro e bate no quarto do menino, estabelecendo a nova cronologia do Universo Tangente junto com sua duplicação característica: a versão do artefato em algum lugar do presente e aquela que viajou no tempo.
A presença acidental de um artefato pode causar a autodestruição da realidade temporária, portanto, ele deve ser devolvido ao Universo Primário. Para realizar esta tarefa, um "Receptor Vivo" é escolhido por critérios não revelados e abençoado com Poderes da Quarta Dimensão, como força aumentada, telecinesia (habilidade de mover objetos à distância por poder mental), mais a capacidade de conjurar fogo e água. Donnie se torna responsável por guiar o motor de volta dentro de algumas semanas, como Frank avisa, mas se ele falhar, o Universo Tangente entrará em colapso junto com um buraco negro capaz de extinguir toda a humanidade. A partir daí, entram em cena os "Vivos Manipulados", indivíduos que auxiliam inconscientemente o Receptor. Todos os personagens fazem parte deste grupo, exceto Gretchen e Frank, porque ambos morreram antes que a normalidade fosse restaurada.
ATO II: 2 DE OUTUBRO A 30 DE OUTUBRO DE 1988
A professora de inglês Karen Pomeroy é uma das mais proeminentes "Vivas Manipuladas" na jornada. Durante uma aula, ela levanta uma discussão sobre The Destroyers, um conto publicado em 1954 pelo escritor inglês Graham Greene. Segue-se um grupo de jovens que arrombam a casa de um homem, mas em vez de roubar, vandalizam o local de dentro para fora. Quando questionado sobre o que teria motivado o crime, Darko responde “Eles queriam ver o que acontece quando eles destroem o mundo”, um aceno para o cenário caótico que ele terá que enfrentar para restaurar o equilíbrio da quarta dimensão. Em outra tentativa de contribuição instintiva, a professora incentiva Gretchen Ross a se sentar ao lado do protagonista e, finalmente, antes de ser demitida, ela escreve “Cellar Door” no quadro-negro, um substantivo composto famoso por seu som agradável, Kenneth Monnitoff, o professor de física, também contribui muito para a narrativa. Donnie procura por ele para esclarecer os princípios da viagem no tempo dez dias antes do possível apocalipse, logo a dupla começa a debater ideias de Uma Breve História do Tempo, de Stephen Hawking. Segundo o cientista, a locomoção no espaço-tempo seria possível se alguma matéria passasse por um buraco de minhoca, um túnel entre duas pontas no espaço, mais rápido que a velocidade da luz. Esse tema está diretamente relacionado à missão do personagem principal, assim como o livro de Roberta Sparrow, que Kenneth lhe apresenta a seguir.
Conhecida pelo apelido de Vovó Morte, a autora era freira até ser escolhida como a receptora viva de um artefato. No entanto, a grande transformação de Roberta a levou a trocar o celibato pela ciência, Além dos "Vivos Manipulados", aqueles que morrem durante a regência do Universo Tangente também podem contatar o Receptor Vivo e, se necessário, controlar os elementos clássicos e se mover no tempo. Para tanto, o chamado Morto Manipulado usa a Construção da Quarta Dimensão, um buraco de minhoca feito de água cuja operação foi ilustrada por Sparrow em dois apêndices de sua obra. Ao longo dos 28 dias em que a aventura se desenrola, Gretchen e Frank são assassinados, mas enquanto o primeiro involuntariamente colabora com Donnie, o segundo volta no tempo para construir uma Armadilha de Garantia, ou seja, reorganizar os eventos em uma cadeia para facilitar a missão de retornando o artefato ao Universo Primário.
No início do mês, Frank menciona a viagem no tempo enquanto se comunica com Donnie, por isso ele fala com seu professor de física depois da aula. O menino também é incentivado a inundar a escola e, por causa da suspensão das aulas, volta para casa com Gretchen e passa a conhecê-la melhor. Quando o casal vai ao cinema, o homem vestido de coelho aparece novamente para ordenar ao adolescente problemático que queime a casa de Jim Cunningham, o líder motivacional reverenciado pela vizinhança. Isso leva a polícia a descobrir um arsenal de pornografia infantil escondido no porão, resultando na prisão de Jim. A professora Kitty Farmer tem pena dele, então ela decide ficar na cidade e pedir aos Darko para substituí-la em uma viagem com o grupo de dança de sua filha mais nova.
Com a casa vazia, Elizabeth Darko, a irmã mais velha do protagonista, organiza uma festa de Halloween no dia 30 de outubro para comemorar sua admissão na Universidade de Harvard. Nessa ocasião, exatamente 27 dias após o início da história, Frank leva Donnie, por meio do Constructo da Quarta Dimensão, a uma nota colada na geladeira dizendo que o coelho estava na festa e foi buscar cerveja. Momentos depois, o menino ouve a palavra “Porta da Adega”, em referência à pista deixada pela professora Karen, e segue com a namorada em direção à adega de Roberta Sparrow. Dois hooligans da escola estavam esperando por eles lá, então eles vão até a rua e brigam quando Gretchen é acidentalmente atropelada por Frank, que estava voltando com bebidas. Darko finalmente puxa a arma encontrada no quarto de seus pais, graças ao Constructo de Frank, e atira no olho do jovem...
ATO III: 31 DE OUTUBRO DE 1988
Até o amanhecer do dia seguinte, havia uma versão do motor a jato que voltava do futuro e outra em algum lugar do presente, ambas dentro do Universo Tangente. Em 31 de outubro, esta última locomotiva voa no avião que trouxe a família de Darko de volta para casa, então a armadilha de Frank's Ensurance culmina no momento em que ele sobe uma colina para devolvê-la. Como sua mãe havia deixado uma mensagem na secretária eletrônica anunciando o horário da decolagem, Donnie sabia vagamente quando eles sobrevoariam a cidade. Ao usar os poderes do Receptor Vivo, ele cria um buraco de minhoca com a água da nuvem e envia o artefato de volta ao Universo Primário. Uma vez que o problema da duplicação tenha sido prontamente resolvido, a realidade temporária chega ao fim sem um desastre massivo.
Quando o universo tangente entra em colapso, todas as suas ocorrências desaparecem. Portanto, o Receptor e o Manipulado podem confundir suas experiências com sonhos ou esquecê-los completamente. Após o motor a jato ser restaurado, esses 28 dias são rebobinados e o Universo Primário retorna de onde parou em 2 de outubro, instantes antes do acidente. Nesse ínterim, ouve-se a voz de Donnie lendo uma carta enviada a Roberta Sparrow, na qual ele demonstra desejo de viver e buscar respostas. Acontece que o motor guiado por ele retorna ao seu quarto, já que uma fenda no espaço já havia sido aberta lá antes, mas agora o erro foi consertado, então ninguém viaja a tempo para salvá-lo. Os outros personagens então acordam ao som de Mad World Tears for Fears, enquanto o herói ri histericamente, em coerência com a letra. Afinal, que mais restaria a se fazer?
Fontes: Imdb e Letterboxed.