Annie Hall é um marco das comédias românticas. Talvez seja errôneo também afirmar que Annie Hall, bem como todas as outras obras do Woody se encaixem nessa classificação, que hoje parece simplista, de “comédias românticas”. Também não se pode afirmar de modo algum que Woody faça apenas dramas sérios, afinal são realmente divertidos, talvez “tragicomédia” seja o termo mais apropriado. Enfim, Annie Hall não é aquela história da garota que fisgou os olhos de um garanhão (e que de certa forma ainda se sustenta no cinema até hoje) até porque convenhamos, Alvy (o mais famoso alter ego de seu diretor) está bem longe de ser o modelo físico de masculinidade, se é que ele existe. Trata-se mais de um filme de memórias e reflexões, sempre frustradas, acerca das relações e nada melhor então para contar o drama infinito, mas irresistível do romance real do que alguém que vive confundindo a realidade com a fantasia.
E é assim que Annie Hall começa mesmo, se assumindo corajosamente como análise do absurdo desejo de amar, se arriscando a tentar compreende-lo. Para isso então, a narrativa de Allen descontrói logo de cara a barreira entre espectador e filme com a quebra da quarta parede, mesmo nos momentos mais improváveis e já nos deixa claro que “Annie Hall” é muito mais “Woody Allen” do que qualquer outra coisa. E Woody Allen é muito mais mágico: Mais uma vez perdeu o que seria o “amor” de sua vida e insiste em nos contar – 32 anos depois, encarnado em um velhote iria tirar satisfação nossa do por que estamos o assistindo em Tudo Pode Dar Certo (Whatever Works, 2009) -. E a vida conturbada de Alvy/Woody se reflete desde pequeno em uma narrativa que ousa invadir, juntar e se comunicar com cada fio de memória que o cabelo de seu velho diretor tem para nos contar: por que somos reprimidos quando pequenos quando beijamos aquela garota da escola? Parece ser algo tão complexo que precisamos nos voltar a Freud?
Já se tratando de Annie Hall, que é bonita, mas o oposto de Alvy, um neurótico humorista viciado em livros que contenham a palavra “morte” no título, não faz sentido nenhum dentro do mundo que somos apresentados, o mundo desse incorrigível judeu. Annie é o símbolo da personificação do abstrato, do absurdo em forma de mulher, ainda mais vista dentro do olhar lógico de Woody, que insiste em discutir diretamente conosco e compartilhar cada momento trivial, mas com a carta na manga que o cinema lhe oferece: moldando a imagem de várias formas, os momentos de estresse e amorosos de sua mente neurótica. Por isso cada momento Woody se lamenta e usa de um gesto singelo, aplicando a mesma “magia” que seus cineastas favoritos usavam, Fellini e Bergman, só que dessa vez para salva-los, homenagear, defende-los e de certa forma nos empurrar para briga, pedindo nossa opinião, conversando conosco e principalmente nos perguntando.
Cabe ainda o flerte com as cidades, como é típico de seu cinema, mas diferentemente de como faz comumente, em Annie Hall, Woody coloca em disputa as cidades e troca o paraíso estético e “zen” das palmeiras californianas pelo lixo, o urbano e caótico conflito cultural de Nova York. Woody acaba por nos perguntar de forma discreta, mas certeira: De que adianta a beleza das cidades, se quando na verdade o amor parece mais aquele lugar caótico, às vezes maravilhoso, às vezes terrível? E a montagem de Annie Hall brinca, sem ser confusa, com esse mundo, afinal, é parte da veia autoral de seu diretor filtrar-se dentro das memórias, pensamentos, narrar olhares e criticar com humor o mundo que o cerca. Alvy não consegue se livrar de Annie, ele pergunta para nós, que infelizmente não podemos responder e então para a senhorinha que anda na rua, um velho homem e enfim a um casal jovem, bonito e aparentemente sadio que responde que são vazios e desinteressados e provavelmente por isso tudo deu certo, afinal.
Allen como bom entendedor de cinema, sabe também que para bom espectador meia imagem basta, mas mesmo assim procura desbrava-las, discuti-las conosco até o fim. Não poderia ter outra pessoa melhor senão o próprio Woody Allen – que voltaria com Alvy em Memórias (Stardust Memories, 1980) com a mesma sede insaciável por respostas e principalmente por mais questões. Annie Hall traduz em 93 minutos o que uma centenas de filmes não conseguiram: racionalizar o amor e assim descobrir e principalmente admitir que ele é de fato ilógico. Dai que a cena final de Annie Hall é apenas a afirmação do que vimos no começo, a análise do romance real sob a ótica irreal, essa sim muito mais gostosa de se ver.