“Este filme apresenta uma experiência na comunicação cinematográfica dos acontecimentos reais. Sem a ajuda de legendas intercalares, sem a ajuda de um cenário, sem a ajuda de um teatro. Este trabalho experimental tem o objetivo de criar uma linguagem de cinema absoluta e verdadeiramente internacional, baseada no seu total afastamento da linguagem do teatro e da literatura.”
Dziga Vertov trabalhava com cinejornais filmando o Exército Vermelho durante a Guerra Civil Russa, que aconteceu entre 1918 e 1921. Num tempo de descobertas para o cinema, Vertov fez parte do movimento construtivista (manifesto estético de 1914, que negava a arte pura, assimilando influências da indústria) e escreveu diversos artigos sobre a sétima arte. Vertov também é responsável pela teoria do Cinema Verdade, que prezava um estilo de filmagem documental, buscando mostrar a realidade bem como ela é. Daí que viria seu grande legado para o cinema, o documentário O Homem Com A Câmera (Chelovek s kino-apparatom), de 1929.
Filmado em Moscou, Kiev, Yalta e Odessa, O Homem Com A Câmera retrata ao longo de pouco mais de 60 minutos o cotidiano dos moradores russos em um dia normal. Definido pelo crítico de cinema norte americano Bill Nichols como “documentário reflexivo”, o filme mostra o que vemos todos os dias, porém busca, através das imagens apresentadas, a ponderação sobre o ecossistema a nossa volta.
O homem (Mikhail Kaufman) sai às ruas carregando sua enorme câmera a manivela e registrando o que vê. A cidade acorda aos poucos, as pessoas saem de suas casas, os trabalhadores vão ao local de trabalho. Tudo isso é registrado pela lente do cinegrafista. Tornamo-nos espectadores da vida russa e de todas as suas classes. Vemos desde mendigos adormecidos nos bancos da cidade até mulheres ricas passeando descompromissadas em seus carros.
A montagem precursora de Vertov vai de acordo com o ritmo da cidade. O cineasta usa em determinados momentos imagens em câmera lenta para captar momentos ímpares da cidade. Por outro lado, ao entrar em uma fábrica e mostrar a linha de produção, a imagem acelerada traz o tom mecânico dos trabalhadores. Em alguns momentos o diretor até recorre ao uso de fotos para mostrar fragmentos específicos da vida, como a risada dos transeuntes. Outros elementos, como fusão, tela dividida e até animação destacam a obra das demais feitas naquele período.
Sendo a vida o principal objetivo a ser captado pela lente do homem com a câmera, adentramos em um cartório, onde as pessoas registram suas certidões de casamento e divórcio. Saindo dali, seguimos uma ambulância, carregando os resquícios da fragilidade humana até a sua morte. No hospital vemos uma criança nascer, saindo de dentro de sua mãe, para logo em seguida sermos confrontados com a imagem de um cortejo fúnebre atravessando as ruas. A vida passando diante de nossos olhos como se durasse apenas um momento.
Os momentos de lazer também têm espaço na película. O cinegrafista vai à praia, capta as pessoas conversando e se divertindo durante uma tarde ensolarada. O dia vai acabando e um olho aparece na lente da câmera. O olho se torna um espelho da obra, movendo-se ligeiramente em busca de mais imagens. Mas a noite está chegando, o dia acabando e é hora de finalizar as filmagens.
Tendo sido lançado como filme mudo, O Homem Com A Câmera hoje pode ser visto acompanhado pela trilha sonora da companhia de jazz britânica “The Cinematic Orchestra”, que criou arranjos especiais para o filme e os lançou em 2003. Há ainda outra opção, que é a criada pelos compositores Geir Jenssen e Per Matinsen. Essa, lançada em 2001, contou com instruções deixadas pelo próprio Vertov, que imaginou sua obra acompanhada por um pianista. A ótima trilha da “The Cinematic Orchestra”, porém é totalmente atual, trazendo filme para o nosso tempo e tornando a experiência ainda mais interessante para o espectador.
A frase apresentada no início do texto foi extraída do começo do filme. Podendo parecer pretensiosa à primeira vista, é certo que seus objetivos foram atingidos em grande parte. Do ponto de vista manual, Vertov é responsável por grandes avanços em técnicas de montagem apresentadas em O Homem Com A Câmera. Mas, acima de tudo, o diretor é responsável por revelar tudo aquilo que vemos, porém não percebemos.
Giancarlo Couto