“Durante uma Guerra civil uma mulher e sua nora sobrevivem, matando guerreiros samurais para os despojar de seus pertences, trocando-os enfim por grãos de milho a arroz, enquanto esperam a volta do filho que está guerreando.”
Um filme que entrelaça vários gêneros tão caros ao Cinema nipônico: Filme histórico, de Guerra, do fantástico, mas sobretudo um drama sobre a ligação de seres humanos em situações extremas.
Algo que fascina num primeiro momento é que o protagonismo nesse filme tão insólito cabe as mulheres. Trata o tema da situação feminina de uma forma inaudita, já que o papel delas é preponderantemente ativo. Ao serem oprimidas pela fome oriunda da situação belicista, elas engendram um plano de sobrevivência engenhoso, transformando o lugar em que vivem, em uma mortal armadilha para pegar os guerreiros desavisados, matando-os e os despojando de seus pertences. Onibaba é a descrição de um universo onde as necessidades primárias suplantam todas as demais. Mata-se para comer, absolutamente tudo, até mesmo um cão não passa despercebido diante do homem transformado em animal selvagem.
Quando um guerreiro retorna, ambas indagam sobre o filho e companheiro que não retorna. Dos lábios do desertor, fica-se sabendo que ele fora morto. A partir da entrada desse personagem o filme ganha uma dimensão maior. O Guerreiro busca seduzir a jovem, desestabilizando a relação sedimentada entre elas. O ciúme se instala, mas não é só isso. A velha sabe que sem o concurso da jovem passará a ter dificuldades para se manter.
Passamos a assistir um filme teatralizado, quase minimalista, onde a brutalidade da imagem se estende de maneira magnifica graças aos jogos escuro e branco de grande maestria. Os planos sobre o pântano onde preponderam altos juncos dão ritmo ao filme, acompanhados sempre por uma música que nos remete ao tribal através dos passeios noturnos que a jovem empreende para cair nos braços de seu amante. Cada plano do filme é incrível visualmente falando e Shindo não hesita em reutilizar várias vezes alguns deles.
Trata-se de um drama puro e duro. Somos deslocados para uma dimensão fantasmagórica no seu último terço de hora, mas a sensação de que caímos num inferno nos acompanha desde o início. Engajado num determinado contexto político (Período Muromachi), ainda que ele só seja percebido ao largo, o filme endereça uma crítica ácida ao bushido e a classe que o segue: os samurais. Os seus feitos ecoam ao longe, produzindo a morte e a estagnação do processo produtivo (A Agricultura). A representação dessa força estranha ao lugar, mas que causa desgraça, nós vemos com mais ênfase em seu início com os dois samurais evadidos e na sequência do rio, onde outros dois samurais guerreiam, de forma até ilógica, presos ao seu mundo, desconhecendo tudo que os cerca: a natureza, os camponeses. O filme deve desagradar e muito, aqueles que cultuam um pretenso passado glorioso, pois o que se vê é somente fome, miséria e destruição. Algo que impele os camponeses a um estado de selvageria.
Temos em Ushi, um camponês que vê na situação a oportunidade de enriquecimento as custas da loucura que predominava. Ele viverá do escambo dos despojos de guerra, tornando-se o maior predador da cadeia alimentar em escala local. Abaixo deles os demais: as “heroínas” e Hachi, espécies de hienas (ou qualquer outro animal carniceiro), a espreita da oportunidade de ceifarem, de se alimentarem. A aparição de corvos em vários momentos é um sinal da enorme vala comum que se tornou o pântano e da transformação do homem em predadores de carniça. Saciada a fome, existem outros apetites. A morte ronda o local, mas o instinto de preservação os sustenta. Ele não é o único instinto exacerbado. Vemos que Ushi (em rápida tomada) possui também uma fêmea nua em sua casa.
Shindô não julga seus personagens. Ele deduz que tudo que narra pertence a um círculo natural, imposto pelo próprio homem em sua sede de domínio. O buraco (poço) com que se inicia o filme existe faz séculos. Faz parte da natureza, mas também da logica biológica que nos pertence. Uma metáfora da morte que aguarda a todos, mas também remete a própria sexualidade.
As maiores críticas a Onibaba são bem fundamentadas, mas injustas. Acusam o filme de ter um valor maior do que ele possui. Parte dela nasce daqueles que esperavam que Shindô (que foi roteirista de Mizoguchi) tomasse o seu lugar . Falam que Onibaba é caricatural e exterior em suas imagens de cinema nipônico. Que Shindô não aprofunda os elementos da mise en scène. Que prefere empobrecer tudo. Diálogos, cenários, roteiro, a mise em scène, tanto quantitativamente, quanto qualitativamente. Que repete sempre o mesmo gesto, ainda que seja o gesto que dê sentido a tudo. Que instaura o desaparecimento de tudo que cerca os personagens: o conjunto dos elementos objetivos que constituem o quadro que cerca a vida do homem, o contexto psicológico e social, os elementos religiosos e culturais, etc.
O que essas pessoas não percebem é que tudo está lá. O que Shindô faz é uma vampirização desses elementos para a criação de um universo fantástico (ainda que real) levado às últimas consequências. A ausência de uma maior perspectiva exterior, a aparição de demônios (quando a velha garantira que somente no inferno eles vivem), uma vida que mais se assemelha a um purgatório, onde deve se matar, não para viver, mas sim para sobreviver mal.
E repito, a mise en scène é um modelo a ser seguido na utilização dos desenhos das sombras e luzes em preto e branco. A fotografia passa-nos uma sensação louca a partir de soluções simples. A iluminação oferece o toque surrealista necessário ao roteiro. Planos fechados sobre os rostos mudos, funcionam bem. Quando os movimentos são importantes e servem para estimular nossas apreensões, luzes de tochas são colocadas sobre o trajeto. Planos detalhes (boca, ancas, olhos) alternam-se com o uso de uma teatralidade que alarga nossos sentidos. Tudo em prol de reforçar e criar uma impressão de grandeza maléfica. A moral do filme, não será punitiva, mas sim questionadora. Questiona-se o que levou todos a essa situação extrema.
Existe também um sentido de vampirizaçao familiar. A ausência preenche o cotidiano. Kishi é a criança que não retornará. A sogra quer transformar a nora no filho que não volta. O laço de prisão a essa ideia se estreitarão. A chegada do guerreiro aumenta o medo da perda. Ela tem necessidade de um certo controle com a nora que preenche a ausência afetiva do filho. O aspecto do pecado vai surgir somente quando o sexo adentra na trama. O que ocorria antes se justificava a si próprio. O vazio, o medo do nada, ou de uma punição vinda de alhures, somente bate, quando o sentimento de perda surge. Um verdadeiro tapa no rosto da moralidade.
Onibaba é um filme lento. Contudo denso. Uma verdadeira fábula sobre a condição humana em tempo de guerras. E sua índole terrífica continuará nos perturbando mesmo finda a projeção.
Escrito por Conde Fouá Anderaos