Contos da Lua Vaga (1953)

Conheci o filme em 1988 quando da comemoração dos 80 anos da imigração japonesa. E o escrito abaixo ainda (infelizmente) é baseado sobre a impressão causada pela sua exibição aquela época. Não o revi mais por falta de oportunidade e também por amor a obra. Cheguei a ir numa exibição posterior, mas a qualidade da cópia era tão ruim, que optei por não macular o que me ficara na retina.

Século XVI, Japão (Período Sengoku-Jidai), as Vilas são constantemente saqueadas por ladrões (mostra-se assim a superioridade dos samurais frente o campesinato) e Mizoguchi nos descreve esse período de uma forma sutil e admirável ao mesmo tempo, já que ela nos será pincelada através do olhar de 4 personagens e servirá de pano de fundo a uma história ao mesmo tempo simples e profunda. A Guerra desperta a cobiça dos homens. Genjuro ( Massayuki Mori – “O Idiota” – 1951) deseja vender seus produtos cerâmicos, que ganharam um maior valor devido a dificuldade de os produzir e distribuir. Ele desculpa-se perante os seus e a sua consciência dizendo que seu intuito é na verdade fornecer uma vida melhor a sua esposa e filho, deixá-los afastado do sangue e da incerteza do amanhã, protegidos em um lugar calmo. Dessa relação o diretor nos mostra dois sentimentos em relação a criança. O pai vaidoso em relação ao varão e a mãe dotada apenas do sentimento do amor. Dois olhares díspares, o amor aceita e se cala ante o erro do outro; a vaidade não é capaz de enxergar direito a realidade que a cerca. O chefe da família é o pai, ele ordena que a esposa permaneça na vila cuidando do filho até que ele retorne com o dinheiro da venda. Na casa em frente vive o meio irmão de Genjuro, que tem a vista ofuscada não pelo ouro, mas sim pelo desejo insano de se tornar algo, pelo qual não possui nenhuma aptidão: Ser um samurai célebre.

Raros são os filmes que conseguem delinear tão bem os personagens e nos iludir com o que vemos. As imagens quase oníricas que se seguirão levarão os incautos a crerem-se embarcando num filme fantasioso. Na verdade, trata-se de um dos filmes mais realista de toda a história do Cinema. Os sentimentos e desejos humanos são desnudados de forma veemente. Não nos apercebemos disto no momento, pois as imagens que nos chegam são deslumbrantes. A travessia em um rio enevoado, sem vida, quase no limite entre o real e o sobrenatural, reforçará no espectador a sensação de fascínio e incerteza sobre o que vê e o que realmente ocorre. Essa ambientação particular da imagem surgirá em outros momentos, como no encontro de Genjuro com uma dama (Wakasa – Machiko Kyo) acompanhada de uma velha serva ... Visão desbotada, esmaecida, que intriga não só o personagem, mas todos aqueles que assistem o filme. O convite até sua morada, onde ela recompensará o trabalho do artesão, não significará para ele a materialização de seus sonhos, mas sim o mergulhar sinistro em seu depauperamento enquanto homem, pai e esposo.

Dirigido com uma maestria ímpar, vemos aqui o cineasta e os pontos essenciais de suas obras: A defesa da mulher e de suas condições, a teatralidade nuançada pela mise em scène diferenciada (atores e cenários se fundem de tal forma, que parece que toda tomada torna-se um quadro vivo, digno de se expor nas melhores pinacotecas de nosso orbe). O que mais me surpreendeu, o que me ficou daquela projeção até os dias de hoje, foi a surpreendente modernidade e perenidade, tanto de sua mise em scène, quanto de sua mensagem. O que foi que se deu naquela tela??? O filme se endereça a nós do gênero humano com uma sensibilidade tamanha que tenho a certeza que tal mensagem jamais perderá sua força, já que tudo o que vimos me soa atemporal. Volto a repetir novamente, toda tomada é perfeita, os ângulos não poderiam ser outros que os escolhidos, as imagens não se moldariam mais perfeitas, nem com todo o avanço surgido nesses anos. O filme traz-me a certeza de que tudo foi obra de um artista em pleno domínio de sua arte. E é uma obra acessível a todo olhar. Profunda sem ser hermética. Essa acessibilidade me espanta (Chaplin fez coisas iguais, mas seu gênero era a comédia). O filme não é complexo, pretensioso, cerebral. Ele nos fala de guerra, desejos, erros, da loucura que domina os homens, e das vítimas que esse dominar pela loucura deixa sobre nossos rastros. Face a essa narrativa não resta outra coisa que não seja o ser humano aparecer em toda a sua verdade. Os sentimentos saem da tela em nossa direção de uma forma implacável, apesar de tal ser feito com uma sensibilidade inaudita. Foi um desejo altruísta e puro (ornar sua esposa com belos quimonos) que conduz Genjuro ao soçobro. Tobei por outro lado só obtém o perdão da esposa, quando toma consciência de que o que o movia era um sonho egoísta. Essa mudança de personalidade é de uma simplicidade infantil (mais uma vez volta-me a mente Chaplin) mas o efeito que produz na obra impressiona. E assim voltamos novamente nossa atenção a Genjuro e percebemos que lá também vigorava o egoísmo já que diante de Wakasa ele se quedou a lisonja. Todos os personagens estão em pé de igualdade. Todos sofrem, retratando uma época de ebulição em seu país onde nenhum terreno era seguro. Mizoguchi ousou nos mostrar de uma forma onírica uma realidade de uma determinada época. Mas a profundidade dos sentimentos que movem seus protagonistas ultrapassa os limites do tempo e do espaço. São personagens muito densos para se verem delimitados a lugar e época. Bem como a obra é rica demais para ser resumida ou analisada em uma curta tentativa de o comentar. 94 minutos de uma magia que só o Cinema poderia nos proporcionar.


Escrito por Conde Fouá Anderaos
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