Viver (1952)

"Watanabe é um funcionário público que passou toda a sua vida servindo um sistema que onde a falta de iniciativa e a obediência significam êxito. Com a descoberta que possui pouco tempo de vida, ele toma consciência que não vivia : vegetava. Viúvo, morando com o filho que não o enxerga, ele procura coroar de sentido sua existência."

Acabei de assistir “Viver”. Venci o receio. Iniciei em minha existência o contato com a obra de Kurosawa pelo “Os Sete Samurais”. Pretendia assistir posteriormente “Viver”, mas os anos se passavam e a oportunidade não surgia. Aí se criou em mim um clima de receio, já que o desejo aumentava juntamente com o medo de que o filme não estivesse à altura da expectativa criada. Felizmente, tal não se deu. O filme é maravilhoso.

O filme parece flertar em seu início com “Cidadão Kane”. O filme se abre com a imagem de uma radiografia de um estômago. A doença confirmada por essa radiografia dá a seu dono apenas seis meses de vida. É uma voz em off que nos revela isso. E esse narrador nos informa que durante 30 anos esse homem não viveu. Fala-nos também que antes dessas três décadas ele vivera. As cenas iniciais, mais do que mostrar o retratado, pretende descrever a gaiola em que ele vive em seu ofício. Lá impera a burocracia, o não dar satisfações a população. É uma máquina que visa vencer a população pelo cansaço. A função de seus funcionários é mostrar que o que motivou a vinda da população até aquela repartição pública da prefeitura, não é o maior dos males. Tentar solucionar tais problemas é pior do que conviver com eles. É uma ode a incompetência. Sutilmente percebemos que em uma das gavetas jaz esquecido os sonhos de outrora: um projeto desenvolvido por Watanabe para tornar aquele mundo eficiente. Mas para ser considerado eficiente e ostentar em sua casa os diplomas de funcionário exemplar o protagonista seguiu o lema mais conveniente: Para fazer sucesso na carreira pública, é preciso mostrar que você jamais causará embaraços a ninguém, mostrando ser capaz.

Após conhecermos a máquina pública e sobretudo o ambiente da seção onde Watanabe trabalha, nos dirigimos até um hospital, onde ele se dará conta de que seu fim está próximo (6 meses). A política médica de então, não permitia que se informasse ao paciente sobre a sua realidade. Tal pode ser creditado ao número excessivo desse problema em solo japonês (herança das bombas atômicas?) aliado a uma política de corte de gastos (para que se operar, se o resultado geralmente é nulo). Não creio em uma atitude de humanidade dos esculápios de então.

Com a notícia, vemos que Watanabe entra em parafuso. Dá-se conta que não vivia, e não sabe o que realizar com essa ingrata descoberta. O câncer apenas retrata aquilo que ele percebe claramente então: ele vegeta. Procura o apoio no meio familiar, mas não encontra espaço para isso. Busca então os excessos, crendo assim poder recuperar o tempo perdido. “Eu bebo saquê, apesar de ter câncer, para protestar contra a vida que eu levei”. Ele bebe, apesar de seu estado de saúde não permitir, pois quer conduzir sua existência e não mais ser conduzido. Viver é agir. O seu mergulho na noite de Tóquio acompanhado de um escritor de novelas, que se apresenta como Mefistófeles, não deixa de ser uma ida ao inferno. Tókio já se deixara influenciar pela cultura americana. O som que o acompanha nesse périplo, é aquele que embala o país do Tio Sam. Não existe consolo nesse mergulhar, já que nele ele não encontra o passado de outrora. Muito pelo contrário: o mundo que ele conhecia morreu antes dele.

Volta-se então para uma jovem funcionária de sua Seção que viera até sua residência para que ele consumasse o seu pedido de desligamento do serviço público. Ela lhe confessa que estar naquele local é deixar de viver. Watanabe se simpatiza com ela, percebe que jamais a conhecera e se dá conta de que ela carrega em sua análise uma verdade que ele teimava em não ver. Ela o acompanha pela cidade e os familiares de Watanabe, crêem que ela é sua amante. Watanabe encontra nessa jovem o apoio que não vira em seu lar e entre seus amigos da repartição. Sente-se feliz em poder dá alegria a esse ser. Presenteia com meias, leva-a para se divertir e degustar pratos que ela não pode usufruir em seu cotidiano. Quer resgatar a juventude através da vida dela, mas mais que isso percebe que em se cuidando de um próximo, seus problemas se minimizam.

O genial é a forma como Kurosawa relata o retorno de Watanabe ao serviço. Tudo que será realizado então, nos chega através da visão dos que trabalhavam com Watanabe. Só assim a construção do parquinho para as crianças se torna diante de nós uma obra de Hércules. A admiração com que é relatado o feito de Watanabe em seu funeral, nos dá a dimensão de seu feito. Artifício de um gênio: Viver é agir. Mas talvez seja também criar, nem que seja um simples parque para crianças, ou um retrato, ou uma cadeira, ou uma escultura ou filme. Kanji Watanabe nos apresenta a filosofia de vida de Kurosawa: Deve ser horrível morrer, sem antes ter tido tempo de exprimir e concretizar atos concretos. Se para Watanabe é construir um parque, para o cineasta é imprimir uma película. A motivação é única: Viver...

O olhar para trás não é algo incomum na obra do cineasta. Os personagens que desfilam em seus filmes são velhos sábios que encontram em seu passado algo que dota o futuro de razão : Morrer é completar um ciclo. O que diferencia Watanabe é que ele não encontra em seu passado nada que coroe a sua existência de uma razão de ser: A materialização de um sonho dá sentido a existência humana.

Quem encontrar semelhanças entre a proposta do filme e a novela de Leon Tolstoi : “ A morte de Ivan Ilitch ” não estará de todo errado. Ambos os retratados são funcionários públicos e não encontram pessoas que compreendam o que está acontecendo com eles. Ivan tem apenas um serviçal humilde com quem consegue alguns momentos de paz e Watanabe em servindo os humildes apazigua seu ser. Max Weber dissera que na época moderna, a abrangência de conhecimentos trazida pelo progresso, tirara da morte seu significado de coroamento da existência, pois partimos certos de que não apreendemos nada dela. E que Tolstoi fora o primeiro que se dera conta dessa verdade, daí a crise mística que o acometeu no fim de sua existência. Kurosawa não é tão radical em sua visão sobre a vida. Enquanto estiver espaço para a ação, o homem estará se coroando... É isso que nos fala Kurosawa através de Kenji Watanabe.

Filme impecável de um mestre da imagem.

Escrito por Conde Fouá Anderaos

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