Adorável Vagabundo (1941)

“Um grande empresário sem escrúpulos compra um jornal aonde Ann Mitchell trabalha. Rapidamente ele despede vários empregados, entre eles a própria Ann. Para se vingar e como forma de desabafo em seu último artigo ela publica a carta de certo John Doe em que esse personagem imaginário faz um desabafo e um protesto contra a miséria, a corrupção e a hipocrisia que impera dentro dos EUA e por extensão no mundo. Conclui a missiva anunciando que se suicidará se atirando do terraço da Prefeitura na noite de Natal. O Artigo se revela de extrema eficácia. Suscita tal emoção popular que ela é reengajada em seu posto. O problema é que o tal de John Doe não existe. E ela precisa ajudar a encontra-lo nas dezenas de pessoas que se apresentam como sendo o autor da carta. A escolha recai sobre Long John Willoughby, um ex-jogador de base-ball desempregado. Um monumento de candura e inocência...”

Após o término da 2ª Guerra mundial nas cidades europeias devastadas o cenário era recheado de crianças órfãs minguando de fome nas ruas. Sem um adulto ou uma política governamental, sujeitos as intempéries o destino da maioria estava selado: A Morte.

Certa manhã um soldado americano retornando ao seu acampamento em seu jipe se depara com uma dessas crianças com o rosto prensado contra o vidro de uma confeitaria. Assistia o confeiteiro a preparar uma fornada de deliciosas rosquinhas. Faminto e certamente com os olhos arregalados não era difícil perceber o seu desejo. E provavelmente deve ter salivado quando ele as tirou do forno e depositou-as na vitrine.

A essa altura comovido pela cena com o jipe já estacado ao meio fio o soldado desce e adentra no Comércio. Sai dele e deposita a saída nas mãos da criança um saco com as rosquinhas tão desejadas. Sem esperar agradecimento encaminha-se para o jipe, quando sente a farda sendo puxada e ao virar com os olhos demonstrando surpresa a pergunta do órfão, dita baixinho, ecoa no a- Você é Deus?

A história acima ouvi faz tempo. Não sei de quem é a autoria e nem mesmo se lhe fui fiel totalmente. No entanto ela para mim transpõe um questionamento fundamental: “Quantas vezes em nossa existência fazemos de nossas mãos uma extensão das mãos de Deus?”.

E de uma maneira mais ampla ela me serve para resumir um tema que norteia várias das obras de Capra. Sobretudo aquelas em que ele retira o Cristo (ou seu exemplo) dos altares e cruzes e o posta no cotidiano das ruas. Esse tema tão recorrente é tão nítido em pelo menos quatro de suas obras: “O Galante Mr. Deeds”, “A Mulher Faz O Homem”, “Adorável Vagabundo” e “A Felicidade Não Se Compra”. Excetuando-se “A Mulher Faz O Homem”, todas elas adaptadas de outras histórias. E todas costuradas pela sua mente em torno de um tema que o fascinava: Como despertar no ser humano a vontade de materializar Jesus (suas ideias) no seio da sociedade. Logicamente que se trata da leitura que ele tem do Cristo. O homem deveria o ter como modelo e por extensão todas as instituições públicas. Os protagonistas de Capra são simples, rudes e dotados de uma pureza ingênua. No entanto são humanos e se exasperam. Podem ser feridos e estão sujeitos a cair de amores. Seres normais e por isso a comoção, solidariedade e a identificação que causavam no público. E existe nesses filmes uma insatisfação de Capra quanto ao resultado conseguido. Ele queria aprimorar a ideia. Se Deeds e Smith foram dotados de armaduras: um a riqueza adquirida, outro o poder investido (Senado); os outros dois estão mais nus. Era preciso aproximar cada vez mais eles do modelo ideal que Capra perseguia.

Alguém do povo que deveria estar investido do poder encontrado em si próprio: Long John Willoughby de Adorável Vagabundo seria apenas então um esboço para a obra e o personagem que o satisfaria: George Bailey de A Felicidade Não Se Compra. O interessante para nós que amamos o Cinema é vermos e percebemos como essa construção se deu. Como um autor não se satisfez com os felizes resultados encontrados e buscou aperfeiçoa-los cada vez mais. Depois de finda essa demanda, com o coroamento de sua obra prima por excelência é claro que seu cinema arrefeceu-se (ainda que tenha se mantido coerente) e ele buscou aperfeiçoar também o que já legara. “Nada Além de um Desejo” (1951) é superior a “A Vitória Será Tua” (1934). Já a versão de Dama por um Dia, em que se pese o elenco mais gabaritado em 1961, não conseguiu atingir o feliz resultado da versão de 1933. E olhe que Bette Davis é infinitamente superior a May Robson, mas a aura não foi recriada.


O artigo (ou a carta):

“Cara Senhorita Mitchell, eu perdi meu trabalho faz quatro anos. E jamais encontrei outro. Eu primeiramente pedi ajuda ao Governo, mas sua política carcomida é que gera o desemprego. E o mundo inteiro está entrando em colapso. Em sinal de protesto eu irei saltar do terraço da Prefeitura na noite de natal. Assina, um cidadão americano revoltado: John Doe”

Sempre vi esse filme de Capra pela metade no ginasial. Como assim? Ora ele era figurinha carimbada na Rede Tupi e a Sessão começava as 13h30m. Ocorre que minha aula se iniciava as 15h10m. Então eu sempre perdia o desfecho (eu era como dizem, CDF). Isso deve ter se dado ao menos umas cinco vezes. Revi-o posteriormente em outros horários e na tela grande também. O que posso dizer? Houve momentos em que me agradou deveras. Em outros me pareceu apenas bom, mas menor. Como se as partes não estivessem totalmente jungidas. Esmiuçando a sua estrutura, percebo hoje que se trata da obra mais inventiva dirigida por Capra, onde o montante de boas ideias sobrepuja em alguns momentos a sua capacidade de aglutinar tudo em uma obra de cerca de 120 minutos. Se por um lado isso demonstra uma fraqueza do diretor, por outro, mostra a sua coragem. As ideias são boas e pertinentes, coloquemo-las na tela.

O filme sem que o percebamos nos leva a querer saltar não do telhado da prefeitura ou de um arranha-céu. Sim para fora de nós próprios, quando nos damos conta de sua mensagem, de que o diretor estava sim em posse de sua melhor forma: Montagem e mise em scène burlesca, com algumas sequências suntuosas em seu final. Um lirismo genial ao retratar a felicidade existente naquela amizade entre um antigo jogador e esse “Coronel” e sua gaita de madeira. E esse sentimento de se saber íntegro diante de uma sociedade putrefata que a todos automatiza. E cenas esteticamente perfeitas e marcantes que retratam isso, quer num vagão de trem, quer sobre uma ponte iluminada por simples fogueira em campo aberto. Os filmes de Capra podem soar ingênuos e otimistas somente perante aos olhos daqueles que não se apercebem de sua profundeza, das questões morais e filosóficas que levantam. Em realidade são também filmes pessimistas e cínicos que fazem com que só não saiamos nocauteados após sua projeção, devido o diretor possuir o dom, um toque de Midas, para nos resgatar ao final, do cadafalso existencial a que nos dirige.

A chamada fé na humanidade é em realidade um puxão de orelha. O diretor reconta sempre a história do Cristo e nós somos aquela humanidade que teima em não entender a sua mensagem subversiva (no sentido de que devemos nos alijar da vida sem sentido que levamos). A fé na humanidade é apenas sentida e vivida realmente por um personagem e os outros em vez de se espelharem nele (suas ideias) para mudar, depositam sobre suas costas toda a esperança e o dever de tudo alterar. A bondade do personagem, pouco contamina os demais. O povo é dócil e manipulável, as mulheres interesseiras, os políticos aproveitadores e os jornalistas desejosos da queda eminente. O que diferença o herói capresco dos demais é que ele está um pouco mais a margem da sociedade. Ele não se integra e não perde sua individualidade, não aceita participar do jogo existente. Por isso todo ato que sai de si soa como algo sobrenatural e o desejo de posse que o tenta, como algo a ser vencido. É triste ver que Capra está certo. Prega-se uma coisa e vive-se outra.

No filme John Doe é um personagem fictício. As cartas que surgem são invenções. Servem para vender jornal a idiotas que querem crer (Crítica as Religiões?). A ameaça de suicídio é combatida com suborno: Emprego, reconhecimento, notoriedade, etc. Capra nos mostra que o mundo está preparado para absorver e manipular o individual, ao invés de incorporar a sua ideia que nos soa verdadeira e lúcida.

Ao invés de verem a lógica do pensamento do personagem (fictício ou não) veneramos sua imagem. Montam-se clubes (poderiam ser Igrejas – Note-se que em “A Felicidade não se Compra” e nas outras obras Caprescas, Igrejas não aparecem, apesar de sabermos que o homem vai a seu culto) para cultuar ele, ao invés de buscar incorporar as ideias no tocante a mudança do que nos cerca. Tudo se mercantiliza. E rimos quando o Coronel (o personagem mais crível e sensato de toda a obra) chama a todos de abutres. Não seriam esses abutres que iriam despedaçar o que sobrava do crucificado nos tempos antigos?

O Coronel percebe que buscam incorporar “John Doe” dentro de um sistema, ao invés de transformar esse sistema em outro. O que a carta fictícia denunciava era em si as falcatruas. É preciso calar essa voz. Só não a calam, pelo motivo de a quererem usar para aperfeiçoar a bandalheira. E se a voz dele toma o país e cala fundo no coração daqueles que são os alijados das benesses do sistema, é por que ela é verdadeira. Todos sabemos. O triste é vermos que olhamos sempre o rótulo e esquecemos-nos do conteúdo. Ao ser desmascarado é como se tudo o que falava era mentira. O que comprova que infelizmente a humanidade ainda deseja recrucificar o Cristo para que ele salve novamente a todos. É essa visão errada que nos conduz. A humanidade já deveria ter percebido que não devemos cultuar as imagens, mas sim a mensagem a que ela nos remete.

Os filmes de Capra continuarão a nos banhar de um otimismo inexplicável. Fórmula que esse ítalo americano parece ter levado consigo. Aqueles que o chamam de moralista e seus filmes de água com açúcar talvez deveriam meditar melhor sobre eles. Ao menos sobre esses quatro citados. Filmes esses amalgamados entre si e que em realidade tratam de um mesmo assunto. O poder de subversão de tais obras não foi ainda dimensionado. Talvez quem melhor tenha entendido Capra foi justamente J. Edgard Hoover. Ele quis persegui-lo, mas a sua obra foi o que Long John Willoughby não foi. Pôde ser manipulada. E também não foi compreendida em toda a sua profundeza. Nem todos possuem a sagacidade de Hoover.


PS: Indico a todos que leram esse escrito que leiam também interessante artigo de Walter Lima Júnior: http://www.oocities.org/walterlimajr/Cri-Capra.html

Escrito por Conde Fouá Anderaos

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