A Morta-Viva (1943)

“Betsy viaja para as Antilhas no cargo de enfermeira de uma certa Jessica Holland. Lá ela encontrará também Paul (o marido) e Wesley (meio irmão de Paul). Sua estadia será recheada de tam-tams sob o clarão da lua, zumbis com roupas claras e a chegada de um amor imprevisto...”

Conheci o filme em 2010 através do TCM. Vi-o duas vezes. Apesar das dimensões da tela da TV percebe-se claramente que estamos diante de uma obra de respeito. Tourneur de quem eu já assistira “Sangue de Pantera” é um diretor precioso. Aqui ele inicia sua obra, realizada com um orçamento modesto, nos mostrando primeiramente um cenário de clima temperado que nos remete a um clima natalino (um flash-back sobre a neve) para em seguida nos mergulhar em outro ambiente acolhedor nos trópicos. Sob um céu estrelado um barco conduz a heroína até São Sebastião(ilha próxima do Haiti). Esse ambiente de pura contemplação é confrontado pelo que escapa da boca de Paul Holland, que representa de certa forma a linha diretriz do pensamento do diretor: Neste mundo nada é o que parece ser.

Quando Betsy já instalada em sua nova morada acorda com os choros de mulher, ela sai de seu quarto e começa paulatinamente a subir os degraus. De repente as paredes e as escadas como que desaparecem. Ela parece flutuar no vazio, ainda mais que seus trajes noturnos também são escuros. Temos a sensação que um passo em falso e ela sucumbirá em um buraco sem fundo. Ai surge Jessica trajada de roupas claras e avança sobre ela como uma autômata: Olhar vago, passos decididos, um grito escapa elevando o clima de tensão a um limite inimaginável. Quem em sã consciência pode dizer que qualquer um teria conseguido o efeito que Tourneur obteve nessa simples (porém riquíssima) cena?

Poderíamos dizer que estamos mergulhando em um Cinema fantástico. Mas esse fantástico depende muito da capacidade de quem assiste. Os diálogos primorosos e as tomadas inspiradas, nada dizem, nada mostram. Tudo é sugerido. O medo e a morte se escondem em cada canto escuro onde a câmera não alcança. O filme remete muito a “Rebeca a mulher inesquecível” devido os segredos escondidos. O que o diferencia é que sua heroína não entra em contato somente com uma cultura igual a sua. O fato é que os representantes de seu mundo (seus patrões) guardam segredos muito mais assustadores do que aqueles que os nativos do lugar escondem. Colocada no limiar de dois orbes Betsy procura uma solução para o dilema que vive em qualquer um deles. Tourneur não está interessado em mostrar o culto vodu dentro do que ele é realmente. Ele prefere trabalhar como ele é imaginado por quem não o conhece. O que emerge desse culto é a idéia de que os personagens que buscam escapar de seu passado, das forças do destino nada mais são do que marionetes como a morta viva do filme que é manipulada como uma boneca vodu. O que importa para o diretor é que nós, entre os mal entendidos, o sugerido, percebamos a lenta progressão dos personagens que se confrontam com aquilo que não pode ser explicado de forma racional. Betsy serve-nos como um guia, através dela os segredos nos é revelado. Seguindo-a, vamos vendo a dimensão real do que a cerca e os limites do que nos é permitido compreender.

Outro destaque do filme é a trilha sonora envolvente. Os tambores que emergem aceleram o ritmo do filme e o seu silenciar nos remete a uma insegurança. Cria-se uma atmosfera sufocante muitas vezes. Aliado a isso as imagens de um preto e branco preciso e tenebroso. As cenas assustam também pelo que não mostram. A fotografia é um primor. Os atores que secundam os astros cumprem seu papel maravilhosamente. A carranca no jardim não nos deixa um só instante de fazer com que imaginamos que todos que ali vivem nada mais são que prisioneiros de uma situação forçada. Não existem patrões ou servos. Todos somos em grau maior ou menor escravos de um passado impreciso. O filme é uma prova viva de que com pouco o gênio tira muito. Imperdível.

Escrito por Conde Fouá Anderaos

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