A mais humana comédia de Lubitsch
"É um tema universal e uma história simples. Conheci uma lojinha como esta. Os sentimentos entre o patrão e os que trabalham para ele são os mesmos em todas as partes do mundo creio eu."
"Em termos de comédia humana creio que jamais fui tão bom como em "A Loja da Esquina". Nunca fiz um filme em que a atmosfera e os personagens fossem mais reais".
Não é de hoje a minha predileção pela comédia. Sobretudo aquela produzida na década de 30 e 40 nos EUA. Todos já sabem o carinho e a paixão que nutro por elas. Atenção essa que não me afasta de outros estilos e gêneros. E se eu fosse comparar tal gênero a um delicioso bolo, a cereja de tal iguaria seria a obra capresca. Mas nem só de Capra viveu a Comédia Sofisticada.
Vários diretores deram sua contribuição ao gênero: John Ford, Willian A. Wellman, Sam Wood, René Clair só para citar alguns. Outros produziram um número maior de obras como Mitchel Leisen, La Cava, Billy Wilder, Preston Sturges, Howard Hawks, Leo Mcarey e Ernst Lubitsch.
E Ernst Lubitsch é um nome que merece uma atenção a parte. Nunca vi um filme dele que fosse, digamos médio. Não. São sempre produções boas e esta que me leva a escrever é a que mais apreciei. Um primor.
“Alfred Kralik trabalha faz nove anos na Loja de Matuschek em Budapeste. Certo dia seus olhos se fixam em um pequeno anúncio pessoal de uma jovem mulher a procura de alguém. Ele entabula no início uma correspondência cultural que se encaminha naturalmente para o amor. Um belo dia uma certa jovem de nome Novak se emprega na mesma loja. E lá eles vivem incomodados um com o outro. Evidentemente a jovem Novak é a correspondente misteriosa pela qual Kralik se apaixonou...”
Apesar dessa simplicidade de sinopse não se engane. Estás diante de uma rara jóia. Uma comédia que carrega consigo um charme todo especial. Trata-se de uma comédia romântica onde ambos os protagonistas cairão um no braço do outro. Mas o interesse aqui está localizado no mise em scene, na concepção dos diálogos, na interpretação extraída de todo o elenco. Navegaremos durante a projeção no oceano da elegância.
O regozijo, a satisfação, que nos toma do início ao fim, não é advinda de um ritmo desenfreado, tampouco de diálogos curtos e réplicas ácidas entre os protagonistas. O sorriso é permanente, mas às vezes melancólico, já que é grande a humanidade que emana de cada personagem: sonhos, limitações, medos, desilusões, a vida em seus altos e baixos. E a direção de Lubitsch permite que os atores carreguem uma densidade na construção de cada ser, que às vezes esquecemos que se trata do não real.
A câmera capta com acuidade, o que nas mãos de outra direção soaria cruel: o medo do desemprego, as ligações de poder, as adulações e também o espírito de equipe. E em todo momento o diretor demonstra conhecer muito bem o que retrata, pois em cada cena, enxergamos além da aparência o que vai n’alma de cada um, as feridas ou cicatrizes deixadas pela experiência da vida.
Notemos a grande diferença que existe entre Capra e Lubitsch. O alemão trazia para as telas a bagagem cultural do velho mundo: citações, objetos, literatura, música, tudo coabita em sua obra. Os personagens citam Shakespeare, lêem Tolstói; os objetos transmitem cultura – As caixinhas de cigarros executam “Olhos Negros”, folclórica canção russa. Capra não dotava seus personagens de tanta bagagem cultural (o que não desmerece sua obra; é tudo uma questão de perspectiva).
Os empregados deixam transparecer em cada olhar, a alegria e a tristeza nas funções mais simples que lhe cabem em seu cotidiano. Quando são escalados para arrumar a vitrine após o expediente; o vazio da loja se reflete no vácuo do imo d'alma através do olhar de Norvak(e podia ser qualquer outro) e seu ressentimento por estar ali.
Lubitsch também usa nesse filme o recurso da gag contínua que é sua marca ( Em Ladrão de alcova, François tenta se recordar de onde conhecia o secretário da viúva e em várias cenas se apresenta o double-take – movimento com a cabeça de quem percebe as coisas com atraso). Aqui o que serve a esse propósito é a atitude de Pirovitch se esconder cada vez que Matuschek pergunta: Sinceramente... Qual é a tua opinião? Gag em três movimentos, no primeiro o empregado some nos fundos da loja. Na segunda sobe as escadas do depósito e na terceira ao ouvir a frase, interrompe a descida (o reconhecemos pelos sapatos e pernas) e sobe de costas silenciosa e vagarosamente, sem provocar qualquer ruído. É uma contínua anulação do ser. A cada cena menos vemos de seu ser. E uma ode inteligente ao riso.
Lubitsch desnuda-nos um mundo burguês. Alguns ainda sonham em se posicionar dentro desse orbe, estão contrafeitos com a posição que ocupam (caso de Klara e Kralik), mas também tem consciência do horizonte que podem alcançar. Não é um mundo estático. Todos possuem qualidades e também defeitos. As vezes elas sobem a superfície (caso da coragem de Pirovitch). Nesse sentido Matuschek é o catalisador de todas as tramas. É em torno dele e de seu mundo que tudo ocorre.
E como num toque de magia inaudita essa obra de Lubitsch aproxima-se daquelas produzidas por Capra. Matuschek vai ao correr da obra perder um pouco daquele cinismo ligeiro, dando lugar ao aparecimento de alguém mais brando e sentimental. Tal já ocorria antes, sem que o percebêssemos, já que é notório que o número de empregados era superior a necessidade da empresa. E após a desilusão familiar isso se acentua. Essa tentativa de transformar o ambiente de trabalho, reconstruindo ali o lar perdido, aproxima-se das soluções caprescas. Alguns podem considerar uma barriga, uma fraqueza na obra. Para mim não. É a prova maior que os gênios acompanhavam as lições e descobertas realizadas pelos outros. E ainda que inabitual nas obras de Lubitsch, isso funciona a mil maravilhas, por que não foi posta ali de forma abrupta. Desde o início esse desfecho havia sido pensado.
Talvez minha iguaria, meu bolo predileto, tenha espaço para duas cerejas.
E é uma iguaria deliciosa para os olhos e a alma. Bom apetite a todos.
Escrito por Conde Fouá anderaos