Narciso Negro (1947)

“Uma jovem religiosa (Débora Ker) tem a incumbência de fundar um convento que servirá de escola e Posto médico no coração do Himalaia. Ela será assessorada por um inglês – Mr.Dean; que a previne das dificuldades de certa empresa. É em torno desse homem que as rivalidades explodem. O Isolamento, a altitude e as reminiscências do passado precipitarão o drama.”

Recentemente a Revista Veja quando do aniversário da Cidade de São Paulo escolheu como o folhetim (novela) que melhor sintetizou nas telas a cidade: “Rainha da Sucata”. Um dos votantes optou por essa escolha devido a trama ter sido gravada em vários pontos da metrópole ao contrário da outra obra lembrada: Beto Rockefeller. Essa última teria pouco se valido dos cenários naturais de São Paulo. Premissa falsa e talvez escolha equivocada.

Ora, em realidade ainda que o cinema seja basicamente imagens, existe sempre o recurso de sugerir através de diálogos bem escritos e interpretações criando na mente de quem assiste uma idéia sobre o que representaria o local a que se refere o texto. Pode-se valer do Pátio do Colégio em São Paulo e transformá-lo no mais carioca dos lugares.

Cena de Black Narcissus
Soube que no início da filmagem de “Narciso Negro” aventou-se a hipótese de se gravar em cenários naturais muitas das cenas do filme. Pensou-se na Índia ou no Nepal. Powell optou por reproduzir em solo inglês, em estúdios, o ambiente retratado. O que movia essa escolha era a crença que possuía nas capacidades expressivas do cinema. Assim optou-se ao invés de visitar o Himalaia e suas cercanias, de se prender a essência da história e não ao seu cenário. Afinal um romance é um olhar de alguém sobre algo, e não necessariamente esse algo. Assim partindo-se do cerne recria-se o vento que sopra nos corredores do palácio/templo, as flores, as plantas, os montes de neve eterna, a altitude, as cores de cada objeto ou vestuário, os sons, o brilho do sol. Pura criação de artesãos cujo resultado é puro cinema.

O filme a princípio parece repousar sobre o choque de culturas. Mas vejo mais que isso. O que o impulsiona é o poder desestabilizante do lugar: O ar rarefeito da montanha que parece exarcebar cores e contornos, dando a tudo que cerca as monjas uma beleza inaudita, confundindo-as e alterando seus comportamentos. Some-se a isso o fluxo e o refluxo da memória. Isoladas até culturalmente, elas se encontram faces a seus demônios interiores que são despertados. Para algumas é o retorno do desejo, para outras a angústia de se deixar levar pelas pulsações. Elas sabem que apesar de coberto por objetos santos o local foi outrora um palácio que servia a outro propósito (Harém). A velha serva as escuta e as socorre, mas ela desliza sobre os corredores como se estivesse no ambiente antigo.

Narciso negro é o perfume que fere o olfato das irmãs. Ele adentra no local através da figura do jovem príncipe que encarna assim todo um mundo que não mais pertencem a elas. Jovem, belo, rico e com uma vida toda a ser vivida, o príncipe adentra aquele espaço como a chave que abre todo o passado do lugar que elas julgavam enterrado.

Irmã Clodagh desde o início demonstra insegurança quanto ao caminho que tomou. A ida ao local no cargo de chefe da nova Ordem é como uma prova para testar a integridade e força de sua fé. Irmã Rute já é citada desde Calcutá como alguém vacilante quanto ao caminho tomado. Ela não abandona a Ordem de uma maneira racionalizada. O que o leva a abandonar tudo, mais do que uma atitude pensada ou coragem é a loucura da qual cai vítima. Loucura causada pelo conflito que se estabelece entre a carne e o espírito entre todas elas e da qual ela não possui o resguardo necessário para sair equilibrada do combate. As imagens que nos chegam a tornam um avatar de irmã Clodagh. Ela sucumbe, devorada que foi pelos desejos e pela paixão. Os olhos esbanjam uma sensualidade que atinge a quem assiste. Irmã Philippa também não escapa incólume de sua estada em tal lugar. Ela que possui um carinho pelo pomar e horta, tudo transforma em um jardim onde vigorará um mosaico de flores. Irmãs Honey e Briony também carregam no semblante o embate de quem não quer cair sob o peso do local que as instiga a outros caminhos.

Logicamente que o local não é apenas um lugar de confluência de todas as forças passionais, lugar de eclosão de todas as paixões escondidas sobre o hábito. É também um local de encontro entre o grandiloqüente e o irrisório. O Sr. Dean, um colono inglês, que é o centro das atenções de todos os desejos femininos e de todas as loucuras. Se por um lado ele fere com seus prognósticos de fracasso causando má impressão e também uma pessoa com olhar arguto. Contudo o que permanece dele é a imagem de um homem grande, mas ridículo ao depositar seu cinismo e seu desajeitado corpo sobre um pequeno pônei. Um ser coberto que se esconde também naquela região. Um escravo de um passado ignoto.

Um filme que possui uma qualidade técnica invejável para a época e que ousa ao não encantar somente por isso, mas também por preferir a sutileza e a dubiedade na condução de sua trama. Não é por acaso que até hoje é referência na história da sétima arte.


Escrito por Conde Fouá Anderaos em 18/11/2011


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