O desafio maior que a diretora e os roteiristas tiveram ao conceber o filme era retratar de maneira fiel, não a figura, mas a essência em construção de um homem que buscou sempre remar contra a corrente, lutar pela construção de um mundo que ele julgava ser o melhor. Filmes que buscam materializar alguém que passa despercebido e que sorrateiramente mostra ser maior que aqueles que angariam as capas das revistas e os prêmios da mídia, são tarefas ingratas, pois aos nossos olhos incrédulos, chumbados na matéria, tudo não passa de aparência, para conquistar dinheiro e poder.
O primeiro acerto do roteiro é trabalhar isso tudo como se fosse uma fábula, um conto de fadas. Mas estaria o público de hoje, interessado em ver na tela, algo tão ultrapassado? Num mundo onde a leitura não mais encanta, onde o lúdico desaparece cada vez mais, existe espaço para um filme que solicita a todo instante a participação do espectador, a exigência de que ele preencha com sua inteligência e imaginação aquilo que é só insinuado?
De uma felicidade ímpar, Heller vagueia entre a fronteira da ficção e da realidade. Agarra-se a um personagem secundário (o jornalista Vogel) e o faz mergulhar num mundo desconhecido para ele, que passa paulatinamente a agir sobre ele, o transformando. Vogel somos nós, o filme tem valores bonitos, se assenta sobre essa transcendência e transforma Fred Rogers no representante dessa magia, do lúdico. O programa desse homem (que ficou no ar por mais de 30 anos) buscava acolher nele, com suas temáticas e os seus convidados, os males que campeavam por todo o país, a fim de que lá pudessem ser expressados, purgados e resolvidos. Para isso era necessário que Rogers, ele próprio desse a sua vida, e o seu sacrifício pessoal. Ele tinha de se controlar, para ser um digno representante, um porta voz dessa tarefa. Daí o seu auto domínio, o controlar seus maus instintos. Não a hipocrisia de se sentir um santo, mas sim a consciência de que estava longe de o ser. Um simpático revoltado, conhecedor de seus limites. Um ser que transforma em desafio, as dificuldades que lhe surgem na rota.
Outro acerto do filme. Não se trata de uma hagiografia. O que se faz é uma reflexão. A diretora e a equipe (Hanks soberbo a todo instante) respeitam a sua criação. A avalanche de notas graves desferidas pelos dedos não tão ágeis ao dedilhar o piano, mostram que o que existe atrás de tudo é um ser humano. Sujeito a raiva, mas que não permite que ela o domine. Rogers surge assim não idealizado, vislumbramos (impossível materializar qualquer um) um ser misterioso, numa existência quase comum, que fez de seu ofício uma profissão de fé.
Isso seria impossível não tivesse a frente do personagem um ator dedicado e de extremo talento. Tom Hanks (o grande injustiçado pela academia) tem nesse filme, o melhor momento de sua carreira. Ele consegue escapar da caricatura e realmente cria um personagem ao mesmo tempo cativante e terno. Que coopta a todos que se deixam ser acolhidos. Que felicidade esse ano as interpretações. Se não posso questionar o trabalho de Joaquin Phoenix (também magistral), não me resta dúvida que Hanks se ombreia ao colega. Abaixo de ambos DiCaprio e abaixo desse Adam Sandler, Banderas, Driver e Pryce. Colocá-lo na categoria de Coadjuvante foi um golpe baixo demais. Vários atores já levantaram a estatueta, ficando em cena menos tempo que Hanks aqui: Lee Marvin, Forest Whitaker, etc.
Fred Rogers não era um santo, nem um extraterrestre. Em tempos de Messias de arminhas na mão, ele é o anti-coringa, a demonstração de que cercado de vários fantoches, brinquedos e miniaturas, a bondade pode se constituir ainda numa escolha de vida. Uma escolha de vida acessível a todos que não se deixam envenenar pelos que destilam venenos e fingem-se de anjos.
Filmes como esse se mostram mais necessários que aqueles que escancaram o problema que nos cerca (Coringa, Parasita). Até por que se encaminham para nos mostrar uma saída. Saída esta existente em nossa própria essência, mas que insistimos em enterrar. Uns cinicamente dirão que se trata de utopia. Rogers dedicou sua vida a essa utopia. E se todos nós dedicássemos a acreditar nelas? Marielle Heller e sua equipe nos brindaram com uma obra que o tempo elevará a categoria de algo maior. Infelizmente os tempos não estão propícios para degustar essa fina iguaria. Felizes aqueles que ainda possuem essa capacidade.