“Ele aparece pela primeira vez em 1928. Dotado de uma característica única, a de tomar a aparência das pessoas com que ele se encontrava frente a frente (não só física, mas psicologicamente também). Assim frente a um obeso ele se tornava obeso; frente a um boxeador, boxeador também; diante de Eugene O’Neill, um talentoso escritor. Recebe o apelido de homem camaleão. A Doutora Eudora Fletcher vê em Zelig mais do que uma novidade, ou uma cobaia científica. Enxerga nesse ser humano, alguém com uma necessidade imensa de ser amado e compreendido. Daí ele desenvolveu essa característica de se metamorfosear para ser aceito. Eudora pretende tratá-lo, mas é impedida pelos interesses familiares, que desejam exibi-lo como atração circense. Uma reviravolta o coloca novamente em contato com Eudora Fletcher e após curá-lo eles acabam se casando. No entanto, começam a pulular vários processos para que ele reconheça a paternidade de várias crianças; as mulheres que ele iludiu quando assumia outras personalidades...”
É altamente gratificante acompanharmos o trabalho de um artista e verificarmos sua evolução e seu amadurecimento. No caso de “Zelig” tal evolução pode ser notada mais claramente, já que o que Allen fez foi retomar uma antiga idéia, aprofundando-a, tornando-a mais rica, mais densa e aparentemente menos engraçada. Na minha opinião seu filme “Um assaltante bem trapalhão” do final da década de sessenta, já trazia muitos dos elementos constantes nessa obra-prima que é Zelig. Se o filme anterior fazia-nos cair na gargalhada e era muito bom, esse aqui atinge a perfeição.
Assisti pela primeira vez, quando de sua estreia no país. Foi calorosamente recebido pela crítica de então. Na época, diziam que o filme era uma sutil repreensão aos regimes totalitários. (leitura perfeitamente plausível, como poderemos ver a seguir).
Leonard Zélig é um falso autêntico. Ele jamais existiu, mas o cineasta nos brinda com uma construção tão perfeita de um documentário que os mais incautos (quem adentrou no cinema sem um prévio conhecimento de quem era Woody Allen, ou do que o filme tratava) demora para perceber que tudo que nos é apresentado é falso. Já quem conhece ou conhecia Allen, já esboçava um sorriso com o embuste que via. O filme nos fascina na medida em que a presença de Zelig, perverte os conhecimentos prévios que possuímos do passado. A sua passagem pelos Estados Unidos da década de vinte e trinta, sua ida a Europa durante a ascensão de Hitler, a confusão que causa no vaticano, os resquícios deixados na dança e música daquela época, bem como no cinema. Jamais um cineasta se utilizou do saber para criar elementos de ilusão e mistificação, construindo assim de provas irrefutáveis da existência de alguém que nunca existiu. Alguns se recordarão de Welles e sua transmissão radiofônica da “Guerra dos mundos”. Outros da obra de Orwell (1984) que se referia aos governos de Stalin e Hitler.
“Zelig” é um grande filme. Um dos maiores documentários ( se aceitarmos a falsa premissa de sua existência) realizado pelo cinema.
Apesar de sua originalidade, o filme contém alguns dos elementos do cinema de Allen, uma crítica sutil a sociedade: A questão judaica, o fato de não conseguirem um espaço dentro da Sociedade; o racismo dentro dos EUA, “um judeu que pode se transformar em índio ou negro é uma tripla ameaça”; a necessidade de produzirem ídolos, ele é perdoado após suplantar o feito de Charles Lindbergh.
Woody Allen demonstra toda a sua cultura, pois faz exatamente aquilo que os regimes totalitários faziam para criticá-los: Falsifica a realidade (1984). Se pensarmos que um dos atrativos dos regimes totalitários é a perda da identidade para se fazer parte da massa, Zelig é exatamente isso. Ele não possui identidade, consegue assim fugir de seus problemas e de sua existência complicada, se amalgamando ao ambiente que o circunda. Allen não se contentou em amealhar documentos que comprovassem a falsa biografia. Se em “Um assaltante bem trapalhão” atores interpretavam especialistas que opinavam sobre o larápio, aqui ele traz a tela pessoas reais para creditar sua criação: Bruno Bettelheim, Susan Sontag e Saul Bellow tem suas opiniões misturadas aquelas dos contemporâneos de Zelig criados pela mente fértil do diretor. Bettelheim fala que Zelig simboliza o desejo que os judeus tem de se enquadrar dentro da sociedade americana.
Esse desejo de ser outro, de desaparecer no todo, não pode ser visto como um ápice do conformismo? No caso dessa criação, graças a Deus, o diretor demonstra que apesar de falar de judaísmo, ligações com as mulheres, grandes temas, psicanálise e outras obsessões suas, o diretor coloca-as sempre sobre um novo prisma, mais ou menos aprofundado. Zelig ainda perdura em minha opinião como sua obra-prima, um dos melhores filmes da década de 80 e da história da sétima arte. Contudo o diretor demonstra que ainda pode nos brindar com obras de impacto (Match Point, 2005).
Escrito em 29/03/2008 por Conde Fouá Anderaos