Eis aqui um filme estranho do mestre Kurosawa. Em que sentido eu falo estranho. Primeiramente pela metragem inabitual (parcos 58 minutos). Ok, alguns dirão que O Garoto de Chaplin possui uma metragem inferior, mas eu não quis dizer que isso impedisse a realização de uma obra de vulto. Disse apenas inabitual, dentro da filmografia do diretor. Outro ponto que chama a atenção é o minimalismo da história e mais que isso a parte estética. Não falo tanto do uso de elementos do teatro Kabuki (a própria peça que deu origem ao filme) mas sim o fato de Kurosawa filmar tudo em estúdio, a portas fechadas. Alguns elementos no entanto podem explicar parte disso. Quando as filmagens começaram o país estava em Guerra. O que vem a atrapalhar as filmagens foi justamente o seu término. A rendição completa do Japão, trouxe ao estúdio, centenas de soldados americanos curiosos. As filmagens se alongavam. Os costumes chamavam a atenção dos soldados e a cada dia maior era o número deles dentro do estúdio. Então a escolha de Kurosawa, de fazer um filme dentro de um estúdio, quase teatral, que parecia sensata devido a Guerra, tornou-se seu calcanhar de Aquiles. As filmagens tiveram de ser interrompidas. Finda elas, outro problema atingiu a obra. Censores extremamente zelosos, viram na obra um perigoso macular de uma obra clássica do tradicional Kabuki (Kanjicho). E o filme só pode ser lançado comercialmente em 1952. Sete anos após a sua conclusão. Talvez devido ao arrefecer da censura, frente ao prestígio que Kurosawa alcançou a partir de 1950. Um dos pontos que explicam essa censura é a introdução de um personagem que não estava na peça original. O carregador vivido pelo popular comediante japonês Kenichi Enomoto não fazia parte da peça original. E o filme, ao se escrever um papel para o incluir ganhou um aspecto cômico. Isso não atrapalhou em nada a obra, no entanto feriu a suscetibilidade de alguns mais tradicionais. E olhe que Enamoto é considerado até hoje o maior comediante que o Japão já teve. Uma lenda.
Então o que nos propiciou Kurosawa nessa obra que conta a história de um desentendimento entre dois irmãos do clã Minamoto, que faz com que um caia em desgraça, tendo de procurar refúgio em uma região remota. Para se dirigir até lá, é escoltado por seis soldados disfarçados de monges yamabushi que estão a coletar doações para a construção de um templo. Primeiramente diria que o pleno domínio dos travellings, movimentos de câmeras conduzidos com maestria milimétrica, uma montagem sofisticada e uso de grua para os planos aéreos. Apesar de filmado em estúdio e de sua origem teatral o filme convence. Ainda que o distanciamento que temos da cultura nipônica prejudique o resultado para nós ocidentais. Ainda que isso seja minimizado pela presença do cômico que insufla arte e poesia e dá um toque burlesco a trama. Quebrando assim o tom hierático do texto original e o inserindo dentro de um caráter mais universal.
Lembremos que em Os Sete Samurais um camponês se disfarça de samurai. Aqui um camponês auxilia um grupo de samurais a se passar por monges e um monarca a se fingir de camponês. A história não deixa de tocar em alguns pontos caros a obra do mestre Kurosawa. Elogio do sistema feudal (Kurosawa é descendente de uma família de samurais famosos) e da submissão, lealdade para com seu mestre.
Só não saberia precisar se o tema da peça está realmente inserido dentro de um contexto histórico real. E o fim misterioso, inexplicável, me remete a lenda de Dom Sebastião tão presente na formação da cultura brasileira e portuguesa. E apesar de permanecer quase todo o filme encoberto, Yoshitsune centra sobre si toda a atenção. Talvez por que seu poder derive da veneração de todo o povo. O povo permanecera ao lado do nobre, parece nos dizer essa imagem. Mesmo disfarçado de carregador, despido de seus trajes, ele não será esquecido e sua figura permanecerá viva mesmo após sua morte. O camponês que desperta e segue alegremente sua vida ao término da obra, pode representar aqui a serenidade de quem cumpre o seu dever. Talvez a ambiguidade de seu término desgoste a muitos. Um filme a se conhecer.
Escrito por Conde Fouá Anderaos