Já é de conhecimento geral que o western é tido como o gênero tipicamente americano, bem como tornou a figura do cowboy em um mito. Não são simplesmente soldados que são criados sob a ótica de Nascido para Matar (Full Metal Jacket, 1987), para eles, é a criação de uma nova lenda assassina e que tem como deus máximo John Wayne. E é de conceitos absurdamente engraçados e ignorantes que se forma o pelotão do Kubrick. Mas o que eles são realmente? Nada mais nada menos do que jovens fabricados e produzidos a favor de um falso patriotismo que se mascara em uma arrogância suicida sem tamanho, o efeito inverso do que eles queriam (os grandiosos mitos, os super heróis da nação), ou seja, mais um Alex De Large na América.
E esse pelotão surtado de Kubrick nem parece ser muito “violento”, como era o seu “filme-irmão” Laranja Mecânica (Clockwork Orange, 1971). O que choca em Full Metal Jacket é essa maneira normal, cômica de mover à narrativa, como se tudo aquilo não passasse de uma rotina comum. Na verdade a primeira parte focada aos treinamentos, a criação dos novos “mitos”, lendas assassinas se assume com total comicidade e consegue ter tanta insanidade quanto os confrontos no Vietnã. Kubrick mistura então o humor negro e a descontração, até por que fica difícil para imaginar o amor que os soldados devem ter por uma arma, a forma como o sargento Hartman (R. Lee Ermey) se comporta como um alucinado regrado, um criador de monstros. Não é atoa que cabe a ele, que já viveu na pele o ambiente do exército, um dos melhores momentos do filme, em uma atuação bem filha da puta mesmo – que marcaria o filme, agindo como uma espécie de Tony Montana, com um punhado de palavrões, conceitos absurdamente wtf, músicas estupidamente engraçadas e preconceituosas e punições severas.
Embora muito provavelmente nosso protagonista pareça ser o gordinho deslocado que aparece no início do filme, na parte do pelotão, a primeira parte de Nascido para Matar serve muito mais para acompanhar essa tal “transformação” de jovens em máquinas assassinas e por isso nada melhor do que mostrar um defeito de fábrica, um “pequeno erro”, equívoco: afinal nem todos poderiam se tornar uma lenda para “derrotar” os vietnamitas, mas todos eram obrigados. Kubrick não se foca em grandes tiroteios e conflitos diversos e aleatórios depois da preparação dos soldados como seria de se esperar, na verdade existe apenas um grande conflito que acompanhamos de cabo a rabo e é nele que termina nossa saga, mas não de forma simples, mas um doido, suicida, torturante e repugnante confronto entre uma vietnamita e todos os figuraças do exército americano que “conhecemos” aos poucos.
Aliás, trata-se essencialmente de “figuras”, cada um tem sua característica escrota e imbecil própria, dai que Nascido para Matar nem se foca muito no Soldado Joker (Matthew Modine) e sua narrativa, já que existe um apanhado cada vez maior de imbecis e ignorantes aparecendo em tela, mas mesmo assim ele se destaca por ter não a maior habilidade em matar ou aquele espírito de liderança e coisas do tipo, mas sim por sua ideologia (questionada mesmo pelos outros soldados e sargentos) no mínimo duvidosa, o símbolo da paz em seu chapéu e ao lado a famosa frase “born to kill”. E é desse pensamento que discutimos com Kubrick, acompanhando as ações opostas e totalmente questionáveis de um soldado perdido no western vietnamita que aparenta ter a mesma confusão que adquire desde o início do filme: a confusão entre a paz e a violência.
O que Kubrick principalmente questiona é além da ideologia, da criação que a sociedade da para seus jovens, que o próprio país oferece: na tentativa de (re)criar mitos, de criar heróis, acaba se dando um tiro no pé, mais sociopatas, mais psicopatas e mais chacinas. O questionamento de Kubrick é sobre qual seria o verdadeiro limite desse folclore prepotente de mitos, lendas e super heróis que permanece na ilusão dos EUA. E esse cenário da guerra fria é perfeito para adaptar de certa forma o que havia feito em Laranja Mecânica. Só que o que o grande e maravilhoso exército dos Estados Unidos da América se esqueceu é que não mais se trata da figura que vaga o deserto de seu país, explorando as fronteiras e limites internos de sua nação, trata-se do Vietnã e no Vietnã “the wind doesn’t blow, it sucks”.