Gritos e Sussurros (Viskningar och rop) foi o primeiro Bergman que vi. Acabada a sessão, fiquei com ares contemplativos. Analisei a obra e posso dizer que não gostei. Claro que não achei ruim, mas o incômodo desperto em mim foi grande e mais com um pé no negativo do que no positivo. Logo em seguida – seguida mesmo, alguns minutos depois – assisti a Persona (idem, 1966). Excelente. Fiquei boquiaberto com o universo criado pelo sueco e o encanto transmitido pela química de Liv Ullmann e Bibi Andersson. Depois vi outros Bergman’s e cada vez ficava mais apaixonado pela filmografia do diretor. Simplesmente nenhum filme ruim, a imensa maioria deles nem menos que sensacional. Todos despertavam algo, assim como Gritos e Sussurros, porém não eram sentimentos confusos, muito pelo contrário, eram aprazíveis e, até quando incomodavam, eram no bom sentido. E Gritos e Sussurros continuava lá, no meu âmago, porém sem ter o meu carinho. Logo decidi que era necessário revisitar o clássico. Bem que eu fiz.
Agnes (Harriet Andersson) está à beira da morte. Ela sofre de uma doença dolorosa não especificada. Suas irmãs, Maria (Liv Ullmann) e Karin (Ingrid Thulin), se revezam com a empregada Anna (Kari Sylwan) nos cuidados da enferma. Todas no casarão de paredes vermelhas da família aguardam a iminente morte de Agnes. Ela não tem salvação, nem sua dor parece ter fim. O relógio badala, os gritos ecoam, os sussurros reverberam e o passado se revela.
O filme começa e termina mostrando o pátio da mansão onde vivia a família. A abertura é na manhã, com uma névoa densa entre as árvores. O término é numa tarde ensolarada de outono. Todo o resto da história, porém se passa dentro da casa. O cenário é vermelho. O figurino branco. Apesar de Bergman nunca ter revelado os verdadeiros motivos dessas cores predominantes, ele mesmo afirmou não saber o porquê das escolhas, é senso comum de que o vermelho é a cor representante da paixão e da raiva. Cor do sangue que corre nas veias e que, se fervente, leva a atos impensados referidos a esses sentimentos tão ambíguos, mas ao mesmo tempo tão ligados. O sexo, da mesma forma, está profundamente enraizado na obra.
Enquanto Agnes definha, o passado de cada personagem vem à tona. É difícil dizer qual das atrizes se sai melhor. Bergman, é claro, tem grandes méritos nisso também. Criado no teatro, o sueco nunca escondeu sua preferência pelos palcos e sempre privilegiou a direção de atores. Tendo como base um roteiro praticamente perfeito, os diálogos são o ponto chave da trama. A luz ilumina os rostos e ressalta as expressões das atrizes, revelando as aflições escondidas atrás de suas faces. A cena em que o médico (Erland Josephson) coloca Maria diante do espelho e analisa cada traço de seu semblante vem para confirmar isso. O diálogo usado de forma brilhante para elucidar as dúvidas do espectador acerca do tormento no rosto da mulher.
A religião sempre foi um tema muito presente na filmografia de Bergman. Filho de um pastor luterano, a fé já havia sido o centro das atenções do diretor principalmente em O Sétimo Selo (Det Sjunde inseglet, 1957) e em Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, 1963). Em Gritos e Sussurros o tema é um pouco mais sutil, mas ainda assim muito presente. Agnes se torna um martírio dentre suas irmãs que a renegam, têm medo que sua doença seja contagiosa e não querem se envolver na sua morte. Em dado momento temos o discurso de um padre (Gunnar Björnstrand), que exalta o sofrimento pelo qual Agnes passou e, de forma totalmente egoísta, clama perdão para todos que vivem nesse mundo sujo. Segundo ele, Agnes, que tinha uma fé maior que a dele, seria a única pessoa que poderia interceder pelas pobres almas ali presentes. É a dúvida do homem diante de Deus mais uma vez dando as caras. O silêncio do criador diante do sofrimento de suas crias. Agnes, por sua vez, seria a ligação com Deus, praticamente uma nova salvadora.
Bergman usa a própria Agnes para falar também da mãe. Logo no começo do filme, a personagem conta que se lembra da genitora, já morta, como uma criatura fria. Conhecemos então a infância da protagonista e presenciamos sua visão diante da mãe, que lhe trata com diferença e até desafeto em alguns momentos. Tratamento esse muito semelhante ao que Bergman conta ter recebido quando criança. Numa das passagens mais marcantes de sua autobiografia, o sueco fala que, ao tentar abraçar a mãe, foi reprimido com um tapa. O diretor viria ainda a abordar toda sua infância de forma mais direta em Fanny e Alexander (Fanny och Alexander, 1982).
Os sentimentos são a base das relações de Gritos e Sussurros. O vermelho serve de termômetro para as agonias internas das personagens, reveladas aos poucos. Em cada lembrança, ou até visão dos fatos, o ódio desencadeia os verdadeiros acontecimentos do longa. Bergman filma a face de cada uma das mulheres, para que ela se desvaneça em vermelho e sua história seja contada. Karin e Maria se mostram mal relacionadas com os maridos, mesquinhos e distantes. O drástico e o trágico se tornam a solução para ambas, Maria trai o esposo e Karin mutila seu próprio sexo com um caco de vidro. As duas também estão em constante atrito, vivendo de brigas e acusações, motivadas por um passado assustadoramente misterioso.
A mansão vermelha é como um retrato conflituoso. Denso, simbólico e cruel. São esses os gritos e sussurros que não cansam de cutucar o espectador a cada tique-taque do relógio. Como uma obra de arte, é preciso observá-la com atenção, estudar seus detalhes e revê-la de tempos em tempos, a fim de reaprendê-la. Foi o que eu fiz. Bem que eu fiz, bem que eu fiz.
Giancarlo Couto