O Homem que Quis Matar Hitler (1941)

Eis aqui um filme onde existe um texto e discurso aparentemente simples, que podemos definir rapidamente: A Democracia é o bem e o Nazismo o mal. Definição está que não satisfaz ao gênio. Lang deixara a Alemanha já que não quis se sujeitar ao Establishment imposto pelo III Reich. Não aceitara ser tutelado por Goebbels e contribuir com a sua parcela a Educação do Povo através de uma propaganda maciça.

Lang aceita então participar em solo americano de obras que tinham por objetivo uma propaganda antinazista. Isso não quer dizer que ao se criticar o outro, não se critique também a si próprio. Para Lang o desvendar da psique humana através dos novos conhecimentos advindos da Psicanálise é o móvel de sua obra. E ele faz um filme que a cada visita renderá de novas observações. É certo que a época de seu lançamento a demonização da imagem de Hitler já ganhara a mídia. E o diretor logo no inicio do filme brinda o espectador com um sonho que habitava o coração de muitos. Um britânico caçador de férias na Baviera, estando numa floresta, capta no visor de seu rifle Hitler ao invés do animal que perseguia. Ele aperta o gatilho e nos damos conta que nada ocorre, Estava desmuniciado. Em seguida ele o municia (não sabemos se era seu desejo atirar) e um agente da Gestapo entra em luta corporal com ele e o prende. A partir daí o roteiro nos apresenta de surpresas e reviravoltas que jamais poderíamos supor. A complexidade ganha à tela, devido a direção de Lang, onde o inquirir sempre permeia a ação. Quero dizer com isso ainda que o objetivo que norteou a feitura do filme tenha sido o de ser uma propaganda contra o Nazismo (realizada quando o EUA ainda não adentrara no conflito), temos de notar que Lang jamais abandona a noção de que certos valores (ou vícios) são inerentes ao ser humano em geral, e que a Guerra não cria heróis. Desde o inicio o personagem que deveria ser o herói se mostra ambíguo; é muito mais rico do que supúnhamos.

O filme desde o primeiro plano vagueia sobre questões morais que carecem de resposta. A Câmera penetra entre as árvores, trepadeiras, samambaias e os arbustos de uma floresta escura onde um caçador se coloca na trilha de sua presa. Alan Thorndike caça em pleno coração da Alemanha. Supostamente ele a encurralou, então se alonga no solo, adota tranquilamente uma posição de tiro, ajusta o objetivo com a roda para esse fim, coloca o alvo em sua mira, foca e aperta o gatilho prazerosamente. Então busca a munição dentro da mochila e se prepara de novo. Só que desta vez é bruscamente interrompido. A suposta caça é Adolf Hitler mergulhado sob o parapeito de uma varanda. Ainda que a caça seja um sacripanta, o caçador não se aproxima da visão de um herói. Nem o verniz da educação britânica, nem o contexto de uma eminente guerra consegue desviar o nosso pensamento de que estamos diante de alguém frio e perfeccionista. Ainda que ele não se perceba como tal. O propósito de uma caçada é seguir uma caça, cercá-la e abatê-la. O Caçador esconde sua personalidade atrás de uma fachada de civilização. A explicação dada ao oficial nazista (esportiva) é uma fachada que esconde um real propósito. O homem que persegue a caça e a cerca, pouco difere daquele que tem um prisioneiro diante de si e o tortura. A ambiguidade do filme ai nasce e subsistirá até o seu término. Thorndike transformar-se-á na caça, a fim de que se reconheça em sua complexidade. Thorndike e Quive-Smith em realidade mais se assemelham que se desconhecem. É pequena a linha que separa o oficial torturador e o aristocrata britânico. A diferença é que o oficial tem um conhecimento mais pleno de si, algo que o britânico desconhece. Despertar a consciência desse homem de maneira a mais sutil possível é o real objetivo que norteia a direção de Lang. E graças a isso o filme hoje não nos soa datado ou absurdo. Mesmo torturado sob a supervisão de um oficial mais semelhante a um inglês (propositadamente interpretado como um diplomata por Sanders) ele continua a negar a si e aos nazistas que desejasse matar o furher. Ele quer crer que o que fazia era um esporte onde a beleza consistia em apenas não desferir o golpe fatal. Miraculosamente escapa da situação e chega a Londres. Lá, a terra natal não vira o refúgio esperado. Os Nazistas pululam por toda a parte e já penetraram com o seu pensar dentro da própria sociedade inglesa. Não estaria se valendo disso Lang para demonstrar que não existe escapatória para a consciência?

É cruel a forma como Lang se vale da aparição de uma jovem prostituta para realçar mais ainda o aspecto ambíguo de um homem que se nega a si próprio. Encurralado na residência dela ele continua a se arvorar atrás da postura de um cavalheiro distante e inalcançável Ainda que passamos a perceber que ela não está somente atrás de mais um cliente. Ao se postar sempre como alguém superior a todos, ele não se dá conta dos perigos em que colocou os que os cercam. O destino da pobre cortesã é traçado mais por sua atitude de distanciamento, do que pela sanha de seus caçadores. Também podemos acreditar que Lang satiriza a reprimida sociedade britânica de antanho. É uma visão justa. Mas se tal fosse, por que a queda no abismo passa a nascer a partir do exato momento onde o policial interrompe o beijo. E o final onde Thorndike é cercado como as antigas presas e lhe é revelado o destino da jovem, não se limita a um embate entre o nazista e o britânico. É também um embate entre o distanciado inglês e o real predador que se mostra em toda sua potencialidade. Naquela gruta o civilizado se vale de todo o legado da barbárie para sobreviver e suplantar a dor que dilacera intimamente. Quando do salto de paraquedas as imagens que lhe assaltam a consciência é daquela jovem fêmea a que ele negou atenção e também se negou conhecer a fundo. Não se trata simplesmente de arrependimento. Lang de maneira maldosa talvez nos ofereça a visão de que a Guerra não forma heróis. Ela apenas desperta a besta adormecida que o homem guarda dentro de si. Assumir o seu lado predador, não importa quem seja Hitler, ou se existe um Hitler.

Outra coisa que cala fundo é a forma como Lang filma; o tratamento que ele dá a violência. Não se trata somente dos limites da época e do Código de Censura. Trata-se do talento que possuía para tornar essas cenas incrivelmente bem planejadas. Algo que deveria servir de lição para os cineastas de hoje que a banalizaram tanto, que acabaram por enfraquecer a força de sua dramaticidade. Extremamente feliz é a cena do interrogatório onde é elaborado um jogo complexo sobre as sombras, em que o som reforça o horror que ocorre fora do campo. Dois sulcos de água deixados pelos pés marcam o chão enquanto ele é arrastado diante do oficial nazista após sair da sala. Este simples recurso torna o não visto, algo extremamente insuportável. Então a câmera se desloca e se fixa no rosto do Major Quive-Smith, o verdadeiro executor de tal barbárie. A cena onde o Assassino nazista tomba eletrocutado sobre os trilhos após uma luta é mostrada de forma curta e grossa. A sua execução, o seu desfecho, o resto ocorreu nas sombras, mas ao mostrar só o resultado, temos a dimensão da curta batalha.

Sobre o elenco e as interpretações nada a reparar. Serviram com maestria ao trabalho do mestre. George Sanders compõe um personagem diabolicamente sedutor. A Joan Bennet coube um papel complexo, devido a necessidade de ter de driblar a Censura da época. E o fato de seu personagem sucumbir inocente no altar do sacrifício é pouco comentado. Um tiro de fuzil no coração da hipocrisia da falsa moralidade de sempre. Carradine compõe um taciturno assassino com um ar espectral que enche a tela a cada aparição. Pidgeon talvez tenha aqui o melhor papel de sua carreira. Consegue passar toda a gama de ambiguidade desse personagem difícil. A fotografia de Arthur C. Miller com uma Londres envolta em névoa perene, cheio de lugares com visões distintas (o túnel de metrô mais parecendo uma ratoeira) e de seres que se escondiam na escuridão (a sociedade corrompida por simpatizantes do Nazismo?).

Outro lance de maestria do roteiro. Mesmo em Londres, o britânico seria entregue de bandeja para ser julgado pelos nazistas. Crítica a maleável e inepta diplomacia britânica da época. E ela é propositadamente realçada por uma dúvida. Tivesse assinado a confissão, teria a Inglaterra aceitado a invasão da Polônia sem pestanejar. Só para se dizer inocente perante a atitude de seu cidadão.

O filme é rico de detalhes e sutilezas em todos os aspectos. A forma como Lang trabalhou o roteiro faz com que não tenha envelhecido nada.

Vale a pena conhecer.


Escrito por Conde Fouá Anderaos

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