O Samurai (1967)

“Não há maior solidão do que a do samurai, exceto talvez a solidão do tigre na selva”

Bushido, O Livro do Samurai

O samurai é uma criatura que habita um mundo diferente. O samurai é um ser que busca erudição, perfeição, honra e moral. É uma criatura leal, disciplinada e muito rigorosa, ao mesmo tempo também é habilidosa. É, apesar de um “soldado”, um guerreiro, também é mais do que uma criatura violenta, é uma criatura diferente, que precisa ser observada. É uma pessoa que convive com o certo e o errado desde o princípio, desde que o mesmo nasceu. Da infância até a fase adulta. São seres solitários, que apesar de “extintos” do mundo, ainda vivem por aí rondando grandes capitais, ali e aqui.

É disso que Jean-Pierre Melville se apropria para criar O Samurai(Le Samouraï,1967). Melville busca através do estilo noir que muitos filmes se apropriaram na década de 40 como Relíquia Macabra(The Maltese Falcon,1941), para dar identidade à um personagem rodado na sua história, com uma verdadeira carapuça samurai em todos os sentidos, mas vestido e escondido. Através disso, cria uma película tão perfeita e única que marcaria para sempre a história do cinema, burlando as regras do noir, criando um dos personagens mais famosos(e bem atuados) e principalmente marcantes, com um jogo de cenas e cenas, filosofando ao mesmo tempo que conta a história, para nós, o espectador.

A história, nos trás Jef Costello(Alain Delon), um assassino perfeccionista e totalmente rigoroso. Não é apenas um assassino perfeccionista, ele é um gênio e sempre consegue escapar com facilidade de suspeitas e principalmente manipular com toda a sua inteligência. Mas quando o mesmo, é subestimado a matar um homem, em um bar acaba errando o plano e deixando pistas para pessoas que estavam presente no bar e desconfiaram, como Valérie(Cathy Rosier). E a cada vez que a investigação policial vai aumentando de proporção, Costello vai cada vez mais se complicando, não só com a polícia, mas também com os criminosos que encomendaram o homicídio.

Desde já, Melville encabeça ao espectador, proporções muito diferentes. Jef Costello está desta vez em perigo muito grave, mas é com as jogadas de câmera, rápidas cenas e a expressão que Melville dá a entender ao espectador quem é a personalidade do filme. Todos os ângulos são filmados com uma perfeição muito peculiar, onde se focam as faces. Usa da ausência do diálogo para usar a linguagem corporal como objeto mais utilizado no filme. Nada escapa da câmera de Melville, tudo é tão bem retratado que fica difícil enxergar algum erro. Os encantos da personagem, são transmitidos também através da linguagem de Melville sempre trabalhada durante todo o filme para que o seu estilo criativo seja criado a partir de um outro já muito consagrado, o noir.

A cidade é um retrato triste e feio. As câmeras de Melville captam isso a todo momento, é impossível não reparar, como também é impossível não reparar como a personalidade de Jef Costello é bem trabalhada e usada. É uma figura simples, típica de filmes noir, usando um belo sobretudo e um chapéu muito bonito, mas através disso tudo é um gênio do crime e mais do que isso é uma inspiração e uma criatura que vive filosofando, e uma criatura que procura um lugar para habitar e se sente distante da realidade, toda hora e todo momento os elementos de Melville são totalmente simbólicos, como a moradia de Costello, aquela figura tão pop e “perfeita” aos moldes de um assassino, como também seu pássaro, que é o seu único companheiro que apesar de estar sempre com Costello, assim como ele, está preso em uma gaiola e incapacitado de voar e se sentir livre. Costello, não é bem uma personalidade que busca uma liberdade em si, mas sim, viver em uma realidade melhor para ele mesmo e sem tanta podridão. Claro que o mesmo faz trabalhos sujos, mas perto dele, Costello os torna como obra de arte e não apenas o trabalho maçante de toda hora matar pessoas.

Apesar do silêncio de Costello, toda hora ele nos diz algo muito relevante e totalmente dentro de sua moral. Costello é uma personalidade tão forte e especial que precisaria ser analisada a parte se quisesse ser compreendida. Já Melville, deixando todo esse trabalho para Alain Delon retorna também na cidade, pois aqui, sua homenagem ao noir não se trata bem de um roteiro ou super produção que tende a mudar definitivamente o gênero com sensacionalismo ou algo, mas sim que através da mesma torna possível ao espectador enxergar a visão de um assassino típico de filmes noir na sua arte de matar e filosofar. É com esses e outros ângulos de visão que Melville nos encaixa que também podemos ter a visão de uma sociedade frágil e pobre apesar de pop e descolada, bem como os moldes do bar onde Jef Costello assassina a vítima que o daria mais prejuízo na sua carreira até então, lembra o bar de Casablanca(idem,1942) tanto pela presença de algumas personagens como Robert Favart com um traje bem típico, a super lotação e principalmente a peça que envolve Jef Costello, Valérie.

Claro que com tudo isso, Melville não poderia deixar de usar a ironia para criar o seu estilo dentro do noir. Sendo assim, Melville, usa praticamente todas as contradições ou pelo menos as “regras” que fariam um filme noir e só deixam ela mesmo no roteiro, e usa praticamente tudo de forma diferenciada, bem como, o uso do branco-e-preto nos filmes noir eram um dos elementos típicos e exatos para criar um filme do gênero, já aqui o mesmo não utiliza, muito pelo contrário, apesar de usar o cinza e o tom mais escuro como representação da fragmentação e decadência da sociedade atual na cidade e nas próprias roupas de Costello, Melville se utiliza das cores para mostrar de forma contemporânea e pop brincando com esse tom cinza tão forte. Obviamente, Melville não poderia deixar de usar algo, além das paisagens que brincam com o existencialismo e a arte atual com tantas tonalidades e cores como a decadência moral da sociedade, sem algo de fundo para ajudar a dar o toque. Melville, apesar de usar muito do silêncio e dos diálogos rápidos e geniais, também se utiliza dos sons da cidade, da inquietação de Costello e sua manipulação falhada com a pianista Valérie, na qual o mesmo acaba se sentindo atraído(ou não), do seu prazer e seriedade, rigor em matar por dinheiro. Tudo isso são elementos muito importantes, claramente, mas o uso da trilha-sonora clássica com alguns toques estranhos de suspense ou de ação, pouca vezes usados, mas quando usados, são perfeitos, assim como acontece muito semelhantemente à uma obra posterior, Laranja Mecânica(A Clockwork Orange,1971)

Os traços da perfeição de Melville, não param por aqui. O uso desta filosofia de um jeito tão especial e natural, nos faz lembrar do clássico Bande à Part(Bande à Part/Band of Outsiders,1964) na qual também se trata de uma homenagem aos clássicos americanos, só que nesse outro caso, dos filmes de crime estadunidenses, que mesmo assim, também ainda pega algumas pontas e ritmos dos filmes noir, mesmo que não especificamente. Os dois, tanto a homenagem de Godard e Melville conseguem captar com precisão o intenso amor juvenil, um cenário metropolitano decaído seja por crítica seja por estilo. Mesmo a obra de Melville, ser totalmente rica na sua personalidade, na sua ampla criatividade e impulso de tudo o que é bom do noir em uma única película e entre outras coisas, e quase impossível não notar semelhanças entre obras-primas tão ricas e cheias de inspiração.

Melville é completo em sua obra, consegue captar tudo e usar da filosofia que parece tão distinta da realidade que vivemos hoje em dia(sim, é um filme que consegue ainda ser atemporal), com o ritmo delicioso e divertido do noir americano. O samurai, não é apenas um filme noir, ou um filme homenagem aos filmes noir, é mais do que isso é um entorno sobre essas identidades é uma história que se apropria da crítica e da arte cinematográfica para se criar e convocar o que a de melhor no gênero e em uma junção explicar essa arte, tanto da de Jef Costello, como a de quem ama o cinema, ama o noir em um enredo simples e genial, cheio de símbolos, criações e um novo modo de cinema criado a partir de um cinema, a poesia se encontrando perfeitamente, palavras são quase impossíveis de descrever a grandiosidade(que se compara à da cultura japonesa, que inclusive tem total influencia na conjugação de Melville sobre obra-prima, tão magnífico quanto é o Bushido para os samurais), mas apesar de tudo a tela é capaz de descrever impecavelmente e mais um pouco e fez isto em um dos melhores filmes que o cinema já pode ver.

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