Imagine a seguinte situação: você e seus amigos presos numa cabana abandonada, vitimadas por estranhas forças na floresta - banhos de sangue, possessões demoníacas e uma bruxa no porão. Ao menos no cinema são estes os ingredientes de um dos maiores clássicos do gênero trash: A Morte do Demônio (The Evil Dead). Deu medo, pareceu clichê? Engano.
Mesmo com plot de premissa simples, o texto passa distante da previsibilidade de outros tantos. Após encontrarem um misterioso livro redigido com sangue e pele humana, jovens acidentalmente despertam a ira de forças ocultas, sendo possuídos um a um. No início, a trama impressiona ao utilizar uma câmera “point of view”, dando ao espectador a sensação de ser ele mesmo ‘a força’ que percorre os bosques em absurda velocidade, partindo tudo a frente. Sem distribuidora, o pretenso projeto de fim de curso, contou com o apoio de Robert Tapert (produtor e colega de Raimi), transformando sua própria fazenda em set de filmagens. No Festival de Cannes em 82 recebeu a crítica de Stephen King, apontando-o como filme de terror mais ferozmente original do ano - esta frase serviu como alavanca para o sucesso.
Gelo seco, gore e muita criatividade – teve o diretor Sam Raimi (Homem Aranha) ousando e abusando com 20 anos apenas (no período de pré-produção). Na faculdade de cinema, o cineasta reuniu seus irmãos (Ted e Ivan Raimi) e juntamente com seu colega de curso (o ator Bruce Campbell, ex-babá de Ted) produziu uma versão teste do filme, “Within the Woods”. O resultado foi de êxito absoluto!
O longa contou ainda com outras duas sequências, tendo sofrido diversos problemas na definição do nome, que entre atrasos e inúmeras gafes no título por aqui, precisou de um subtítulo, herança de uma (cagada) falha da distribuidora que o traduziu. O que deveria se chamar simplesmente “A Morte do Demônio 2” , acabou virando Uma Noite Alucinante (uma refilmagem travestida de sequência), que após seis anos ganhou sua terceira parte. No Brasil, curiosamente o primeiro a chegar foi a sequência - Uma Noite Alucinante, seu precursor veio somente oito anos após a estreia americana.
Se o primogênito da trilogia já agarrava-se ao leves tons de comicidade na franquia, suas sequências exploraram ao máximo seu humor (terror pastelão), popularizando ainda mais o gênero, e transformando de vez o ator Bruce Campbell em ícone trash. As referências no longa são inúmeras: dentro do porão há um pôster rasgado de Quadrilha de Sádicos (1977), a serra remete-nos ao clássico O Massacre da Serra Elétrica (1974), e Necromonicom - Livro dos Mortos (da obra do escritor H.P. Lovecraft) entre muitos. Segundo o escritor, o nome quer dizer Al Azif, um termo árabe que significa ‘ruído noturno’ que se supõem ser o uivo de demónios. Com o devido respeito a Roger Corman (O Corvo, 1963) considerado o avô dos filmes ‘B’, hoje The Evil Dead ainda segue com o grandioso status de Pai do Filmes ‘B’ no segmento, influenciando diretamente o badalado diretor Peter Jackson (O Senhor do Anéis), logo no início de sua carreira ao produzir e dirigir longas como Náusea Total (1987) e Fome Animal (1993). Outro nome que virou referência é o de Joel Coen (dos Irmãos Coen), que chegou a trabalhar como montador e assistente de câmera de Raimi no longa.
Cultuado pela originalidade, domínio e autoralidade de seu mentor, The Evil Dead é repleto de habilidosos movimentos de câmera, estes posteriormente patenteados e conhecidos também como "Evil Force Cam". Bem humorado e satírico no âmago, o longa de baixíssimo orçamento consegue ser inteligente, dinâmico e hilariantemente surreal. Vale lembrar a importância do humor negro no desenrolar da saga, o que neste primeiro ocorre em homeopáticas doses, tornando-o um tanto mais sombrio que seus sucessores. A clássica cena do estupro é insana, capaz de arrancar-nos gargalhadas e medo simultaneamente.
Raimi utilizou uma câmera veloz e ágil, acertando em cheio nos chamados ‘ângulos holandeses’ (demonstrando a confusão do personagem, fazendo com que as linhas horizontais revelem-se diagonais na tela), parecendo seguir os olhos do diretor - chegando a passar por cima e de traz da cabeça de Campbell em formato de ‘U’ - SENSACIONAL! Infelizmente (com exceção da miríade cinéfila), o grande público não se preocupa tanto com o ‘lado escuro do humor’, das grandes sacadas ou se são boas as histórias. Chocar acaba sendo a tônica de quase tudo que é produzido atualmente. O que teoricamente se podia buscar neste tipo de filme, uma coisa apenas: levar sustos, o que aqui não ocorre de forma gratuita e banal.
Além de todo o dito sobre o longa, The Evil Dead é um filme que tem cara e cheiro de ‘B’, onde Raimi parece estar brincando de fazer cinema. Por vezes é possível ver Campbell se divertindo em cena, segurando-se para não rir, assim é também o sentimento que nos passa a firme direção de Raimi. Possivelmente a ausência de estilo o tenha beneficiado em meio às experimentações no processo enquanto descobria-se como cineasta. O longa tem a ousadia de quem faz cinema por amor, não por dinheiro - da inocência na diversão, talvez por isso ainda detenha tanta força no circuito cult. É recomendadíssimo aos fãs do gênero (de estômago forte), e inequivocamente ideal para assistir com os amigos em noites de rodinhas de terror, pois magistralmente transita livremente entre o medo e a risada.
Por fim agora eu proponho o seguinte: apague as luzes, prepare a pipoca e a cerveja – tire (ou deixe) as crianças da sala e agarre na cadeira – a maior obra do gênero trash já vai começar, delicie-se entre a diversão e os sustos com A Morte do Demônio em The Evil Dead.