Bastardos Inglórios (2009)

Credita-se com acerto a Walter Scott (Ivanhoé) o primeiro artífice que elaborou a técnica de inserir personagens fictícios dentro de um momento histórico já definido, conseguindo assim recriar e recontar uma história já sabida. Não foi só isso, criou também a interação entre personagem e esse momento histórico, fazendo com que este último crie especificidades nos caracteres dos personagens. Criou-se assim uma amálgama que junge os conflitos históricos aos conflitos internos dos personagens. E também a possibilidade de se lançar um novo olhar sobre os personagens históricos que são vistos através dos olhos desses personagens fictícios.

A primeira seqüência de “Bastardos Inglórios” logo após os créditos de abertura ao som de ““The Green Leaves of Summer” ” fez com que me quede a uma realidade: Quentin Tarantino é um dos grandes cineastas da história do cinema. A mínima dúvida que eu pudesse ter sobre a sua capacidade enquanto artesão desaparece. Somente um gênio poderia criar de diálogos tão inspirados e fazer uso de todo o universo do pensar nazista.

Falemos dessa seqüência que abre a película e já que adentrou para os anais da sétima arte. Ela é pungente e insustentável: Fala do nazismo e sua ideologia que consistia em cooptar as boas pessoas mostrando que elas eram falhas somente por esconderem judeus e que poderiam se redimir em os caçando. O roteiro torna cada segundo mais pesado que o precedente, cria um suspense que nos parece insustentável, através de diálogos suaves em aparência, jogando o jogo da sedução o mais pervertido que seja. Instruído, afável, agradável e meloso, o Coronel Hans Landa é sem sombra de dúvida o maior símbolo do Nacional Socialismo concebido pelo Cinema. Ele fere mais por nos soar simpático. Não foi só o fazendeiro LaPadite que fraquejou diante daquela figura.

A criação de Christoph Waltz não soa em momento nenhum inverossímil. Ele cria um personagem se tornará lenda: um coronel nazista, definido por ele próprio como um Falcão que caça ratos judeus e um detetive que sempre está um passo adiante de sua vítima. O ator dota o personagem de um gestual inusitado, um ar dissimulado e um talento cômico que cativa quem assiste, apesar de sabermos estar diante de um monstro. Essa caracterização faz que quem divida a cena com ele fique em segundo plano(salvo a magnífica presença de Mélanie Laurent - Shosana Dreyfus) Ali carrasco e vítima se encontram em curta cena. Mas o duelo (por falta de uma melhor palavra vai essa – ambos em realidade engrandecem a obra) persiste. Cabe a ela criar um personagem que mescla fragilidade e docilidade, aliada a uma inteligência impar que se presta a se sacrificar em nome do término do terror (ok, existe também o sentimento de vingança, mas parece soar mais forte ali a vontade de tornar o mundo algo melhor).

Ainda que muitos torçam o nariz, sobretudo os historiadores, já que Tarantino de certa forma reinventa um final para o conflito mundial, não se pode negar de forma alguma que tudo soe por demais inverossímil. A cena inicial com o embate entre o Cel. Hans Landa e LaPadite, já nos mostrava que Tarantino se despojou de toda aquela desconstrução temporal e repetição narrativa. Opta pelo essencial: Uma boa história; personagens bem construídos e interpretações irrepreensíveis. E o mérito todo cabe a Tarantino, pois é dele o roteiro e a direção magistral que ousa sem exagerar. É tênue o fio que divide o excesso do genial. Tudo se desenrola numa singularidade que surpreende.

No entanto tenho sérias reservas com o filme. Nem tanto devido às deformações históricas que fogem do aceitável, já que parecem que os personagens dos bastardos parecem ser do século XXI, entraram em uma máquina do tempo e caíram no meio do conflito. Mais até isso eu aceito, pois os diálogos maravilhosos compensam essas deficiências. As reservas a que me refiro são mais de questões de princípios. Eu não amo a idéia de que Tarantino não critique através do filme talvez os excessos belicistas dos últimos anos. Concordo com a observação de Daniel Dalpizollo: "Tarantino continuará sendo o diretor mais arrogante do mundo enquanto souber fazer filmes melhores do que 95% do restante. Como disse o Thiago, um filme pelo Cinema, que ao lado de A Espiã traz algumas das melhores observações sobre a barbárie da guerra."

O que me incomoda é que parece que ele se diverte e reforça o modo de agir nazista. Ao optar por mostrar que todos se encaminham a reencontrar a barbárie, parece reforçar o pensamento nazista. A tropa de bastardos em nenhum momento parece combater o discurso nazista, pois em suma eles usam do mesmo expediente que os ditos “algozes”. E em se perpetuando o modo nazista, que pregava o aniquilamento, a suástica parece estar cada vez mais entranhada dentro das mentes futuras, sem que elas se dêem conta de tal.

A idéia de se marcar os adversários, era um expediente comum usado dentro dos campos de concentrações nazistas. Lá também cada “cabeça de gado” era marcada. Sabemos que tal expediente não foi uma criação dos nacionais socialistas alemães. Na Argentina do Século XIX(para citarmos um exemplo apenas), o caudilho Juan Facundo Quiroga, obrigava que seus adversários políticos usassem vestimentas que os identificassem. Onde aprendera isso? Nas estâncias de gado onde se criara.

Ao tatuar ou assassinar friamente os seus adversários, os bastardos nada mais fazem que perpetuar o modo de agir nazista. E o final que pode soar para alguns genial, é a grande mentira que corrobora todo o filme; quando o personagem Aldo Raine diz ter realizado a sua obra-prima parece que quem fala é seu diretor. Tarantino está longe de ter feito a sua, ainda que tenha confirmado para o mundo que tem capacidade para isso. Por enquanto ainda creio que filmes como “A vida é Bela”, ainda que feito por um diretor de menor capacidade, tenha contribuído no esvaziamento do discurso nazista e sido mais genial ao relatar os horrores do Terceiro Reich. Tarantino parece crer como Goebbels que o cinema pode ser uma poderosa arma (a idéia de usar os filmes para liquidar a cúpula nazista é genial) mas no final ficou-me a sensação de que falta um rumo ao seu cinema. Ele parece se comprazer em se satisfazer a si próprio.


Escrito por Conde Fouá Anderaos
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