"Eu não quero ver um filme sobre mendigos camponeses.(...) Eu não quero assistir a um bando de camponeses comendo com as mãos!"
“Não ter visto o cinema de Satyajit Ray é como ter passado pelo mundo sem ter visto o sol e a lua.”
Diz à lenda que Ray teria sido o assistente de Jean Renoir em seu filme “O Rio Sagrado”. Tentam com isso justificar o impacto causado nas telas de todo o mundo com a aparição de “A Canção da Estrada”. Em realidade acompanhar as filmagens do filme de Renoir serviu sim ao diretor. Quão distanciado estava o retrato que se fazia de seu país nas telas de cinema. Uma realidade muito aquém da verdadeira India. (Não quero com isso condenar a obra de Renoir, a qual mesmo nem vi. Retrato apenas as impressões do cineasta indiano).
Satyajit Ray era um grande cinéfilo (foi um dos fundadores do Cineclube de Calcutá). E não caiamos na infantilidade de crer que o que veio a tela foi fruto da realidade que cercava o diretor. Ele era de uma família abastada e também teve de mergulhar na realidade que filmou para poder retratá-la como se devia. O filme é baseado em um romance popular de Bibhutibhushan Bandvopadhavav. E o projeto levou cinco anos para ser produzido.
O primeiro desafio de Satyajit Ray foi convencer os produtores de que se deveria filmar longe dos estúdios. Em seguida driblar o curto orçamento. As filmagens perduraram por 5 anos. Imagina-se o desespero do diretor. E se alguns de seus protagonistas viessem a falecer (no caso da personagem da avó) ou se transformarem fisicamente (no caso das crianças). Essa longa filmagem explica ao menos a sensação que eu tive ao ver o filme. As primeiras imagens são mais duras, presas a um academicismo (ainda que extremamente bem realizadas). Nota-se ai a influência do neo realismo italiano. Mas existe um algo mais. A paixão que depreende de cada personagem que ganha a tela. A velha encarquilhada com sua boca desdentada a sorrir tão naturalmente que nos cala fundo na alma. Não se trata de uma mendiga Sr. Truffaut. É um ser humano rico demais, que só a sensibilidade de alguém como Satyajit poderia imortalizar. E as crianças são adoráveis. Ok Sr. Truffaut. Elas não possuem nenhum centavo no bolso, mas carregam dentro de si a alegria de saberem-se donas de si. E é crível e adorável a cumplicidade entre a menina e a velhinha. E as frutas que ela colhe e lhes dá, não seriam tão saborosas se compradas na sua Paris Sr. Truffaut. E a mãe que pode soar-nos antipática, em realidade é um ser que também teve de renegar todos os seus sonhos, para que seus filhos possam ter os deles. Ainda que vejamos a India como uma sociedade estamental, o que vem a tela é a esperança de dias melhores. E também a certeza de que se vive o presente buscando suas alegrias e não os seus obstáculos. Todos os atores, apesar de sabermos que se tratam de amadores funcionam a mil maravilhas (como nos filmes de Bresson).
A mise en scène de Ray é de qualidade e de uma inventividade que parece perdida. Por se tratar de atores não profissionais, ele filma coisas do cotidiano, muito próximas a qualquer ser. E então sua câmera capta através de suaves deslocamentos, de zooms discretos, um valor, uma emoção, sempre atada à realidade do cotidiano. Seja na vila, seja na floresta, toda imagem é sempre surpreendente, bela. Bem diferente da Europa ou de nossas capitais, A existência do outro que nada difere de nós (não fosse as roupas, os talheres, as louças chiques, os veículos, as ruas pavimentadas, a eletricidade, etc – Não é Sr. Truffaut?). E também a diferença de se enxergar tudo isso Sr. Truffaut. Ray não tem prazer em mostrar a miséria, as dificuldades. Ele tem prazer em mostrar como os indianos vivem apesar de todas as adversidades. E sem se lamentar, praguejar, enfrentando tudo com uma dignidade que cala fundo. Esqueçam as imagens veiculadas pelo atual (e, no entanto irreal) “Quem quer ser um milionário”. Existem mais cores no filme de Ray, apesar de ser em preto e branco, do que na Índia retratada pelo ganhador do Oscar. E música é tão bem colada às imagens que sentimo-nos lá. Não se trata de miseráveis ou faquires. Trata-se de seres humanos. Da condição humana. De tudo aquilo que nos mostra que só existe uma raça no mundo: a humana.
Avaliação: 10/10
Escrito por Conde Fouá Anderaos