Após a experiência vanguardista de Notícias de Casa, em Os Encontros de Anna, Chantal Akerman retorna a uma estrutura narrativa mais ortodoxa, ou pelo menos a uma estrutura narrativa, coisa ausente em seu trabalho anterior. Para tanto, ela parte da história de Anna Silver, interpretada por Aurore Clément, uma jovem cineasta belga (tal qual Chantal) que está viajando pela Europa na divulgação de seu novo trabalho. Nos poucos dias que acompanhamos a personagem, presenciamos os encontros seguidos de diálogos (talvez mais monólogos que diálogos, visto que normalmente apenas um fala enquanto o outro escuta) que a cineasta tem com cinco figuras diferentes, que juntos constroem um panorama das sociedades alemã, belga e francesa do pós-guerra (o filme se passa em 1948) sob a ótica de seus cidadãos. Mais do que um trabalho de desconstrução social, Chantal elabora personagens totalmente distintos, porém com uma coisa em comum, todos estão tentando encontrar a si mesmos. "Pra que serve tudo isso?". Em mais de um momento ouvimos essa frase, vinda de bem mais de um personagem. Pra que serve a vida? Pra que trabalhar? Pra que criar os filhos? Pra que fazer o que fazemos, se a morte é tão iminente? A guerra recém acabada trouxe a incerteza de estar vivo no dia seguinte. Essa incerteza trouxe a melancolia. A melancolia permeia os personagens. Embora a guerra não seja citada diretamente em nenhum momento, sentimos constantemente a sua sombra pairando sobre os personagens. Sombra, ou pelo menos em alguns momentos, penumbra. Da fria e distante maneira de filmar de Chantal composta da fotografia magnífica de tons sóbrios e contrastes ávidos, câmera sempre estática ou em um ligeiro movimento uniforme e unidimensional além dos já marcantes silêncios que falam mais do que muitos diálogos, Akerman constrói também, além do já citado, uma visão sobre as diversas formas de relacionamento inter e intrapessoais. O primeiro dos encontros de Anna se dá na saída da sessão do seu novo filme em Munique. Lá ela encontra o jovem Heinrich Schneider. Schneider é um pai solteiro, cuja esposa o abandonou para fugir com um turco, deixando-o sozinho com sua filha. Ela nunca mais retornou, telefonou ou visitou. Heirich busca uma mulher que preencha o vazio deixado por sua antiga esposa, e encontra isso em Anna, por quem se apaixona. Porém, o sentimento não é recíproco, e logo ele está sozinho novamente, procurando por algum sentido em sua vida mais uma vez. "Você encontra uma mulher, vai até a sua casa. Você pensa que algo maravilhoso irá acontecer. Você alimenta as suas esperanças, então de repente ela diz 'Vá se vestir', e você está sozinho novamente. A Vida é sempre assim?" O segundo encontro de Anna ocorre numa estação de trem em Cologne. Ali ela reencontra Ida, uma amiga da família que não via a algum tempo, e que lhe conta os problemas que tem com o marido, que ela tanto amava e que lhe era tão gentil, mas que após a guerra mudou totalmente, tornando cada vez mais frio e distante. Ida procura algo naquele homem que a faça continuar amando-o, mas percebe que isso é cada vez mais e mais difícil. Em dúvida se deve seguir aquela vida ou não, ela procura uma resposta, ao mesmo tempo que cobra de Anna uma explicação em relação a um noivado que essa tivera com seu filho, mas que terminara abruptamente - duas vezes - porém mesmo assim, os dois continuaram se correspondendo. Anna promete pensar sobre o assunto, e parte, deixando Ida novamente sozinha em sua busca. "Eu me lembro de quando eu me apaixonei pelo meu marido. Eu tinha 13 anos. Me apaixonei apenas de olhar para ele. Ele era tão bonito. Eu tinha tanto orgulho de andar na rua com ele. Ele era tão gentil. Mas a guerra o mudou, todas essas coisas terríveis que aconteceram. Agora ele se irrita fácil, e parece me culpar de tudo o que aconteceu. (...) Mas eu o perdôo. Eu sei que não é sua culpa. Eu prefiro que ele grite comigo do que fique irritado por dias. Eu sei que isso faz ele se sentir melhor. Mas quando eu começo a me sintir mal, eu penso nos velhos dias, em como ele era gentil, e como eu tinha orgulho dele e de mim." Após isso, o próximo encontro de Anna se dá a bordo de um trem, chegando a estação de Bruxelas, onde ela encontra Hans, um alemão que viaja através do mundo a procura de um lugar onde viver. Provavelmente esse é o mais desolador de todos os personagens do filme, embora seja o menos trabalhado. Hans está tão perdido no mundo, que ele precisa viajar através desse em busca de um lugar que finalmente o faça se sentir bem. No fundo, toda sua busca se resume a uma única palavra: liberdade. "Eu também estou indo para Paris. Eu vou viver lá porque dizem que a França é a terra da liberdade. Talvez eu seja feliz por lá. De qualquer forma, você tem que viver em algum lugar. Eu sou de Berlim. Depois eu fui para Hambargo, porque lá tem um porto. Eu sempre quis ir para a França. Dizem que os franceses carregam a liberdade em seus corações." O penúltimo encontro de Anna é com sua mãe. Uma mãe solitária, que ama sua filha mais que tudo, e que por isso acaba se tornando um tanto quanto superprotetora, tal qual a própria mãe da Chantal, como assim ficamos sabendo em Notícias de Casa. Ela sofre com o distanciamento de sua filha, sofre com a recessão pela qual o país passa e sofre com o sofrimento de seu marido. Em meio a isso, lhe resta apenas procurar por alguma esperança e seguir em frente, tentando reencontrar a si mesma. "Não, não está indo muito bem. É a recessão, ela nos pegou em cheio. Isto é, pegou a todos, mas nós estamos perdendo tudo pelo que trabalhamos durante 30 anos. às vezes você se pergunta se valeu a pena. Seu pai está bem desencorajado. Em um momento ele diz que tudo vai passar, e que nós apenas temos de segurar as pontas, e no momento seguinte, ele pergunta 'Pra que serve tudo isso?'. Ele suspira e fica recolhido. Eu tento fazê-lo mais confiante. Sorrio para ele. Às vezes funciona e às vezes ele nem sequer nota." Por último, o derradeiro encontro de Anna acontece já em Paris, com seu amante. Daniel é um profissional respeitado, casado, que ama sua esposa e odeia seu emprego, porém não é feliz com a primeira e não consegue largar o segundo. Como todos os personagens, Daniel está perdido, mas nem sequer sabe porque. Sua vida segue numa incômoda inércia, onde tudo ele faz por puro comodismo, mas mesmo inconformado com isso, não sabe o que fazer para mudar. "Não podemos mexer no que acontece. Somos apenas levados pela correnteza. Sabe Anna, às vezes eu penso em parar de pagar o aluguel e a conta do telefone, e simplesmente desaparecer. Mas eu não consigo parar de trabalhar. Se eu paro por um dia, como nos domingos, eu fico perdido. Ou você segue em frente ou você morre. Se eu fosse uma mulher, sabe o que eu faria? Eu iria engravidar e esquecer todo o resto. Eu iria viver perto da natureza e amamentar meu filho a cada três horas. Mas então eu acho que eu devo consertar as coisas, uma vida melhor e todo o resto. Mas se você perguntar o que é uma vida melhor, eu nem consigo imaginar. Não é simplesmente alimentar todo mundo. Nós sabemos que não é só isso..." Porém, o mais importante de todos os encontros do filme é o de Anna consigo mesma. Um encontro que acontece lentamente, a partir do ponto que vamos conhecendo a essa irriquieta figura melhor. Anna foi noiva. Duas vezes. Com o mesmo homem. Ela parece amá-lo ao mesmo tempo que parece não amá-lo. Muito provavelmente nem ela mesmo conheça direito seus sentimentos em relação a ele. Anna adora seu trabalho, porém é um trabalho um tanto solitário, sobretudo nas noites durantes suas viagens pelas premières, e ela não gosta dessa solidão. Para supri-la, acaba convidando ocasionalmente homens para irem a seu apartamento e passarem a noite com ela, mesmo que para tanto seja necessário subverter seus valores, sobretudo nos que dizem rspeito ao amor. Enquanto ouve as confissões de todos que encontra, Anna guarda seus segredos para si mesmo, corroendo-a aos poucos, até o momento em que nua, deitada numa cama de hotel ao lado de sua mãe, ela revela estar apaixonada por uma italiana. Todos os diálogos do filme apontam para a desilusão e a busca pessoal daqueles que encontram Anna, mas são os silêncios que caracterizam essa busca quando se trata da protagonista. "(...)" Agora, depois de tudo, acho que cabe uma comparação entre o cinema tradicional europeu com o cinema tradicional americano. Enquanto o segundo é um cinema montado em cima de revelações e situações, na qual se objetiva comumente surpreender o espectador, utilizando na maioria dos casos essa surpresa como parâmetro de qualidade, o primeiro é um cinema que foca mais nas personagens, de modo que sempre se sabe perfeitamente aonde se irá chegar. Os Encontros de Anna não apresenta qualquer tipo de reveleção. Ele não conta com altos e baixos, apenas flui tranquila, serena e perfeitamente, assim como a câmera de Chantal Akerman, que apenas desliza, sem qualquer tipo de oscilação vertical. Parece estranho, mas é o cinema europeu que mais se vale da máxima otternschlaguiana (curiosamente vinda de um filme americano) de que "as pessoas vêm e vão e nunca nada acontece", afinal, é assim que a vida funciona. Nesse momento, cabe ao espectador a escolha entre ver o mundo como você gostaria de ser, despregando-se da realidade por duas horas para partir em uma odisséia por uma terra de ilusões, ou presenciar uma overdose de realidade, que provavelmente será extremamente incômoda, porém ajudará a compreeender melhor o mundo ao seu redor. Na escolha entre o real e o surreal, eu fico com os dois, tudo junto e misturado.
Os Encontros de Anna (1978)
Jorge
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