Cada vez mais os filmes modernos dispensam uma introdução, partindo direto para a ação. Tal fato se verifica sobretudo no cinema independente, que possui o hábito de iniciar o filme jogando a história diretamente e esperando até que o espectador começe a compreender o que está acontece e finalmente embarque na história. Durval Discos não é esse tipo. Ele ainda utiliza a introdução, do mesmo jeito que seu protagonista ainda utilize o vinil, embora quase ninguém o faça em pelo final de século XX (1995, para ser mais exato). A introdução nesse filme de Muylaert se desenvolve inteiramente a partir de uma steadycam, tal qual a introdução de O Jogador de Robert Altman, porém, ao invés de um estúdio de Hollywood, a câmera passeia por entre o comércio da Rua Teodoro Sampaio, no bairro de pinheiros, já antecipando o ar paulistano e a montagem de tomadas longas que se farão presentes no filme. Tudo embalado ao som de Mestre Jonas, do trio Sá, Rodrix e Guarabira (demonstrando o estilo musical que predominará no filme), música que narra a história de Jonas, que ficara preso no interior da baleia, sob uma perspectiva diferente da história normal onde ele anseia pela fuga. Na música, ele escolhe viver na baleia devido ao fato de seu interior lhe fornecer abrigo e segurança, tal qual Durval, que mesmo passando dos 30 anos ainda mora na casa da mãe, pois essa lhe fornece abrigo e segurança. Durval é o retrato da geração que não cresceu. Os adolescentes tardios. Em tempos não tão distantes, completar 18 anos era sinônimo de abandonar a casa dos pais e ir tocar a própria vida. Hoje é cada vez mais normal ver pessoas de até seus 40 anos ainda morarem com a mãe. Tão normal isso, que muito provavelmente você que lê esse texto conhece alguém que se encontre nas condições supracitadas. Isso se mesmo você não for esse alguém. Como já devem ter entendido, o filme narra a vida de Durval, dono de uma loja de LPs na Teodoro Sampaio de 1995. Para quem não sabe, Teodoro Sampaio é uma rua de São Paulo especializada em instrumentos musicais. Cansado de ver sua mãe (Etty Fraser em uma atuação excepcional) trabalhando até a exaustão, Durval (Ary França) propõe que eles contratem uma faxineira. Porém, sua condição financeira lhes permite pagar apenas cem reais para a tal faxineira. Após muito insistir com diversas candidatas que recusam tão ínfima quantia, uma jovem (Leticia Sabatella) aceita de imediato e começa a trabalhar na casa. Logo no segundo dia, ela sai e deixa em seu quarto uma jovem garota de seus cinco anos chamada Kiki. Logo, Dona Carmita (a mãe de Durval) vê em Kiki uma nova filha e se apega à menina, construindo dessa forma uma espécie de drama familiar. Porém, tal qual um LP, Durval Discos tem seu lado A e seu lado B. Se o lado A é uma mistura entre comédia e drama familiar, o lado B é um complexo thriller com fortes doses de terror psicológico, mas que não vem ao caso entrar em detalhes aqui. A única observação que eu faço é sobre a forma com que os lados se invertem, com uma notícia narrada na televisão por Heródoto Barbeiro, o eterno apresentador do Roda Viva que hoje está sob o comando da muito inferior Marília Gabriela, durante o intervalo do Castelo Rá-Tim-Bum, logo entre o quadro daquelas mãos pintadas que ficam interpretando animais e o quadro da Lara e Lana, as duas fadas amarela e rosa que vivem dentro do lustre do castelo. E é aí que mora boa parte da magia de Durval Discos. Enquanto estamos habituados à produções internacionais com referências à cultura pop deles, Durval Discos é um ode à cultura pop brasileira, seja pela musica típica dos anos 70 e 80, seja pelo caminhão de gás que passa na rua tocando a tão fatídica musiquinha que todos devem conhecer. Interessante também ver a desolação psicológica dos personagens, castigados pelo passado que fica cada vez mais distante. Durval se sente ameaçado ao ver seu negócio e sua paixão ameaçados pela modernidade do CD. Dona Carmita sonha em ter a felicidade que tivera outrora, e acaba por ver naquela garota a possibilidade de reaver sua juventude e seu instinto materno, visto que ela aparenta ter consciência de que sua morte é cada vez mais iminente. Personagens desoladores em um ambiente completamente oposto. Sete Kikitos consagraram esse filme como um sucesso de público e crítica, além de impulsionar a carreira da diretora Anna Muylaert que viria a fazer alguns anos depois o também aclamado É Proibido Fumar. Durval Discos pode perfeitamente ser colocado em meio á obras como Cidade de Deus, Lavoura Arcaica e Abril Despedaçado como um ícone do cinema brasileiro do século XXI, que conta com alguns filmes, tais quais os citados acima, que em absolutamente nada devem às melhores obras do cinema americano, europeu e asiático.
Durval Discos (2002)
Jorge
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