1900 (1976)

A primeira metade do século XX foi certamente um dos períodos mais conturbados e agitados da história da humanidade (se não o mais). Com o ser humano munido munido de um brinquedo totalmente novo, adquirido com a revolução industrial, não iria demorar muito para que começasse a se questionar a funcionalidade de tal brinquedo. Tal questionamento se resultaria em coisas como duas Guerras Mundiais, uma crise global, a revolução russa (que conferia realidade ao socialismo, antes meramente teórico) e o nazifascismo. Eventos esses que ocasionariam numa mudança tão grande no mundo em um período tão curto de tempo como jamais fora visto anteriormente. Em 1900, o que Bertolucci faz é transportar toda essa gama de eventos para um microcosmo, representado por uma pequena comunidade do interior da Itália, onde camponeses trabalham na terra dos patrões em troca de um salário. Um ambiente onde os patrões são a burguesia capitalista, os camponenses são o proletáriado socialista e, conforme chegamos no momento histórico devido, surge a repressão fascista. Como dito, tudo em seu devido momento, tal qual ocorrera com a Itália. Mas, para que tal metáfora flua, um enredo se faz necessário. Bertolucci para tal se vale da história de dois netos, nascidos no mesmo dia. O primeiro, neto do patrão (Burt Lancaster). O segundo, mas primeiro a nascer, neto do melhor funcionário e melhor amigo do patrão (Sterling Hayden). Logo os dois, Alfredo Berlinghieri (Robert De Niro) e Olmo D'Alco (Gérard Depardieu) respectivamente, se tornam melhores amigos, mesmo com o abismo social que há entre eles. Porém, os anos passam, e Alfredo e Olmo crescem. Ambos permanecem o perfeito retrato de como eram na infância. Alfredo uma criança crescida, que brinca com seu amigo como se a diferença social entre eles inexistisse. Exceto quando lhe convém, aí ele não hesita em lembrar de sua posição aristocrática. Mimado e irresonsável como se esperaria de alguém que cresceu sob tais condições. Já Olmo tem e sempre teve perfeita consciência de sua posição socialmente inferior, e talvez por isso seja muito mais maduro e politicamente ativo que o amigo, mas isso não evita que ele dê um imenso valor ao sentimento que há entre os dois. Aqui vale uma observação. "1900 ou Novecento?" você pode se perguntar, visto que o título do filme aparece com as duas grafias, dependendo do lugar. A verdade é que, originalmente, Bertolucci concebeu o filme (que deveria ser uma minissérie em seis capítulos para a televisão italiana, mas que devido à altíssima qualidade técnica que vinha tendo, foi decidido que seria mais inteligente lançar como um filme) com o título de Novecento, que significa algo como "século XX" e marcaria o fato de toda a ação se passar nesse período. Porém, na distribuição americana, acreditaram que seria mais simples "traduzir" o título como simplesmente 1900, embora a ação nunca se passe em tal ano, começando-se em 1901 com o nascimento dos dois amigos. Todavia, costuma-se utilizar (leia-se eu utilizo) "1900" para a linguagem escrita e "Novecento" para a linguagem falada. A maior das características do diretor é a ousadia. Se ele já havia ousado o bastante em O Último Tango em Paris, aqui nesse 1900 tal peculiaridade alcança um novo patamar. Brilhante como sempre, onde cada quadro é milimetricamente pensado e executado na perfeita forma para captar o máximo possível do ambiente. Um uso de câmera perfeito, tal qual pouquíssimos diretores conseguem fazer. Cinco horas de filme. Muitos cineastas mundo afora jamais teriam culhões de fazer um filme de tçao longa duração. Prova da ousadia de Bertolucci. Mas praticamente nenhum outro cineasta conseguiria segurar uma obra de tão longa duração de um modo tão impecável como o feito aqui. Prova da genialidade de Bertolucci. Nos seus mais de 300 minutos, pode-se dizer que não há absolutamente nenhum deles que seja dispensável ou maçante. Enquanto alguns filmes causam enfado mesmo com meros 90 minutos de duração, cabe a eles apenas apresentar tal épico italiano. Chocar a burguesia. Outro aspecto da ousadia Bertolucci-ana. Um gato com o pescoço quebrado, rãs sendo empaladas vivas, um porco sendo executado e extirpado, um gato sendo morto a cabeçadas, corpos carbonizados expostos em praça pública, uma mulher empalada pelas grades de um portão, um garoto tendo sua cabeça espatifada contra a parede, nudez frontal masculina, nudez frontal feminina. O mundo como ele é, sem falsos pudores, sem falso moralismo. Os espectadores mais sensíveis podem vir a se chocar com tais cenas. Em casos mais extremos, podem alegar que é desnecessário colocar isso no filme. Desnecessário? Negar isso é quase como negar sua ocorrência. Fechar os olhos para fazer de conta que o problema não está lá. Uma atitude infelizmente, até comum, mas não para esse diretor, afinal, se ele o fizesse, estaria apenas sendo mais um cineasta entre os milhares que existe por aí. Contudo, nem tudo são flores. Se em algum momento o roteiro peca, isso se dá na personagem de Donald Sutherland. Atilla Mellanchini é um homem frio, cruel, unidimensional, superficial, demasiadamente caricato e cuja existência confere à obra um maniqueísmo completamente dispensável. Impossível não vê-lo como um "vilão", e tal artifício não é bom para filme nenhum. Um erro, que embora seja único, é demasiado grande para passar despercebido ou para ser ignorado. Todos os personagens são desestruturados emocionamente. Agressivos, obcecados com uma ideologia, psicóticos, depressivos... Ninguém aqui pode ser considerado mentalmente são, mas, afinal, alguém pode? Bertolucci existencialista, isso é o que há. Alguns chegaram a acusar o filme de ser uma obra fascista. Fascista? O filme transborda socialismo por todos os lados, com discursos dignos de fazer inveja a folhetos de propaganda política, chegando ao ápice de um momento no qual a personagem de Depardieu faz seu discurso pró-socialismo dirigido aos demais camponeses olhando diretamente para a câmera. Praticamente uma panfletagem. Porém, esse socialismo todo pe mostrado com uma visão um tanto quanto moderada. Quando ele finalmente é alcançado (e isso é óbvio que iria ocorrer, visto que se trata de um filme fiel à história de seu país, e não de uma réles obra ficcional), estamos em uma praça totalmente deserta, exceto por um jovem a chorar e dois amigos a brigar. Desolação completa ratificando o caráter políticamente moderado do filme. Por último, uma ressalva para a parte técnica, onde se sobressaem a trilha sonora magnífica de Ennio Morricone, que pontua boa parte do filme com diversos estilos diferentes, variando desde a música tradicional italiana até o clássico, a fotografia de Vittorio Storaro, que marca as passagens do filme com tonalidades que remetem às estações do ano, e claro, a direção sempre majestosa do mestre Bernardo Bertolucci. Dois gênios comandados pela batuta de um ainda maior.

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