Existem filmes que ficam pouco tempo em nossas cabeças. Mesmo quando são bem realizados, algumas dessas obras se tornam apenas lembranças ordinárias em meio à caótica repetição e reprodução cinematográfica no modo se fazer cinema dos tempos atuais. Tornam-se, assim, meros fragmentos de imagens que lembramos vagamente de ter assistido algum dia. Não raro, lembramo-nos menos do filme em si que da impressão que nos causou: - "ah, já assisti esse! Não me lembro bem do que acontece, mas lembro que era até que bom..." - quem nunca sentiu algo parecido que me atire a primeira pedra. Em contrapartida, alguns poucos filmes parecem ser carregados de uma proteção anti-esquecimento. Filmes esses, que inevitavelmente marcam nossas vidas para sempre. Seja pela carga dramática, seja pelas cenas grotescas, A mosca (The fly) do diretor David Cronenberg é um desses casos.
Cronenberg é um cara estranho. Amante do conhecimento técnico-científico e, ao mesmo tempo, das artes literárias, sempre se interessou pelas áreas mais diversas do saber humano e chegou mesmo a cursá-las ambas (Ciência e Arte) na faculdade, terminando sua formação apenas na segunda, a qual se reflete de modo bem claro em filmes que inspiram-se em obras literárias.
Partindo de tais obras, o diretor muitas vezes as adapta, reinventa, revira-as de cabeça pra baixo; É o que acontece em Naked Lunch "adaptação" do livro homônimo de William Burroughs (Reparem que me recuso categoricamente a chamar o filme pelo título que lhe deram em português, a saber, Mistérios e Paixões, vai entender o que se passa na cabeça dos tradutores de títulos...), obra na qual os devaneios do escritor são subvertidos para a tela com uma engenhosidade assombrosa.
A Mosca, ao lado de Naked Lunch talvez seja sua obra mais sincera, uma vez que usa de muito conhecimento científico, afinal, apesar de bizarra, não deixa de ser uma ficção científica, mas sem jamais abrir mão de seu conhecimento literário; referência a Kafka é uma constante em quase todos seus filmes. E aqui a referência à Metamorfose é indisfarçável. Nessa refilmagem do filme A Mosca da Cabeça Branca, de 1958, Cronenberg apresenta uma visão dilemática da relação entre uma jovem jornalista ambiciosa, Verônica (Geena Davis), e um exímio cientista, Seth Brundle (Jeff Goldblum), que conseguira criar uma máquina de teletransporte. Contudo, ao testá-la, consigo mesmo como cobaia, acidentalmente recombina seu DNA com o de uma mosca. Assim, aos poucos começa a mudar incessantemente, e à medida que suas transformações físicas vão se acentuando a forma como os outros se relacionam com Seth, inclusive Verônica, também muda.
Mas por que bem uma mosca, pode-se perguntar. Já vi muitas pessoas que sentem afeição por baratas, ratos, mas moscas? Um poeta disse certa vez que o único propósito de uma mosca é não ter propósito. Ficam ali zumbindo um barulho insuportável. Elas são oportunistas. Tomam nossas sopas. E têm uma agilidade, um esquivo, dignos de ganhar um Oscar, se houvesse uma categoria desse tipo. Então, por que diabos o diretor canadense escolheu justamente uma mosca?
Em certa entrevista, Cronenberg fez uma analogia entre o que é mostrado em um filme e a realidade fora dele. Disse ele que ao se fazer uma comédia com uma pessoa escorregando em uma casca de banana não se pode mostrar a realidade, a qual poderia envolver fraturas cranianas e espinhas quebradas, deve-se fazer o que for apropriado para o filme, no caso, apenas o efeito cômico da queda e não suas consequências reais. Ora, sendo assim podemos concluir que o efeito que o diretor quer é exatamente o oposto do riso, já que o que mais se vê em seus filmes são tripas escorrendo, artrópodes asquerosos e mutações genéticas sinistras. E nesse sentido, o terror que a mistura da realidade com a fantasia proporciona é algo inevitável
Não se trata, contudo, de um simples filme de terror propriamente dito. É irônico ver que o que de fato assusta não são as cenas escatológicas, mas sim o quão repugnantes são princípios sobre os quais se fundam certas relações sociais. Mais do que imagens difíceis de se esquecer, o filme nos fornece uma boa lembrança de como o mundo sensível importa. No fim das contas, Cronenberg que somos mesmo de carne e osso. Há coisas repulsivas aos olhos, de tão feias. Há zumbidos irritantes. Há coisas que cheiram mal. Entre pêlos, vísceras, vômito, torna-se cada vez mais difícil manter a humanidade quando todos à sua volta o tratam como mosca. E isso não porque o que importa é o que se é por dentro, não é aquela velha história de que no fundo há algo de bom e belo, enquanto por fora o que se vê é apenas um monstro, mas porque não se deve cair nesse dualismo barato entre o mundo corpóreo de fora e as bondades dentro do coração.
É como se Cronenberg quisesse dizer: quando se age e se pensa como uma mosca é porque já se tornou uma. E de moscas o mundo está cheio!