O Enigma de Kaspar Hauser (1974)

Para compreender o Enigma de Kaspar Hauser, que em uma tradução literal seria algo do tipo “Cada um por si e Deus contra todos”, temos, antes de tudo, que mergulhar no universo de seu realizador: o cineasta alemão Werner Herzog.

Costumeiramente associado à imagem de alguém cuja sanidade mental é questionável; de difícil compreensão e de difícil relacionamento, poucos atores se atrevem a trabalhar com Herzog, até porque já houve relatos de Herzog ameaçar atirar em atores que cogitavam não terminar o filme. De fato o diretor não poupa esforços para converter para tela seus devaneios – o que se nota sobremaneira, por exemplo, em Fitzcarraldo. Seus filmes exalam, afinal, uma visão extremamente particular, funcionando em muitos casos como auto-retratos do diretor.

Frequentemente retrata personagens quixotescos, grandes aventureiros com sonhos quase impossíveis de serem realizados que beiram à loucura, ou então, personagens impulsivos, com largos vícios e obsessões. Isso quando não são ambas ao mesmo tempo. É importante, contudo, reparar que em sua imensa maioria, são personagens desajustados em seu meio. Seja ele a natureza, ou a sociedade urbana. Não é, pois, difícil entender o porquê de Herzog identificar-se com a história de Kaspar Hause, que é, provavelmente, a hipérbole máxima da lúcida loucura de Herzog.

A trama baseia-se na história real de um jovem que é encontrado, em 1928, em Nuremberg, estático em uma praça com um braço esticado e uma carta em sua mão. Mal conseguia sustentar-se de pé. Após aprender a falar, descobriu-se que o rapaz ficara trancado por 15 anos, desde seu nascimento, em um porão escuro, sem nunca ter visto outro ser humano ou sequer a luz do sol. Apesar do aparente apelo melodramático, não espere sentimentalismos por parte de Herzog. Aliás, a frieza na condução da obra merece aplausos. Além disso, a narrativa, por vezes, utiliza de cenas avulsas para modelar cenas oníricas de forma genial. Afinal, os sonhos de Kaspar assumem suma importância no enfoque da trama.

Antes de ser ingressado na sociedade Kaspar dizia não sonhar, mas também é sabido que no começo de sua vida urbana, antes de ser corrompido pela lógica esquemática da sociedade, ele tinha sérias dificuldades para diferenciar o que era sonho da realidade. Então, muito possivelmente, quando Kaspar estava isolado, ele de fato sonhava, mas seus sonhos eram restritos ao mundo até então por ele conhecido. E por nunca sair do porão escuro, seus sonhos confundiam-se com a própria realidade.

É desse modo sofrível que Kaspar tem que se adaptar aos moldes dessa sociedade do séc XIX, e todos os convencionalismos nela existentes deixam-no extremamente perplexo. Kaspar não entende, por exemplo, por que as maçãs amadurecem, e a única resposta que lhe dão é: porque deus quis. Ou até mesmo a sua incapacidade de entender como pode deus ter crido tudo, á partir do nada, e prontamente lhe respondem: Você deve acreditar no mistério da fé, sem procurar entender.

Repleto de simbolismos, o piano corresponde a uma metáfora que representa a adaptação de Kaspar aos paradigmas da sociedade. Ao chegar lá, Kaspar não sabia o que era um piano, pois nunca o tinha visto. Algum tempo depois, sabia do que se tratava, e também aprendera as suas primeiras notas. Em seguida, lia partituras. Até que ao final, completamente incorporado a sociedade, tocava Mozart com maestria.

No que tange às atuações, esse é um daqueles raros filmes em que o personagem principal é o termômetro da obra; se a atuação não fosse boa todo o filme seria colocado em xeque. Graças ao seu ligeiro retardo mental (isso se levarmos em conta a concepção da nossa sociedade, do que vem a ser esse termo), á sua estranheza por essência, e as suas peculiaridades, e, por que não, ao seu olhar lisérgico que só pode ser comparado com o de Bela Lugosi como Drácula, Bruno, que fora achado trabalhando como um músico de rua por Herzog, serviu como um heterônimo de Kaspar Hauser.

Nessa Obra-prima, Herzog nos convida a conhecer o mundo sob a ótica de uma mente pura, a partir da qual podemos ter deslumbramentos inusitados, num ponto de vista deveras imparcial desprovido das inclinações que nós mesmos temos; Imagine o mundo sem esse mundo de convenções, padrões, parâmetros e conceitos pré-fabricados não se sabe por quem, ou de onde surgiram ou se realmente são convenientes, sabe-se apenas que regem cada faísca de pensamento que temos. Moldam, irremediavelmente, toda nossa existência, e certamente, impossibilita-nos de ir além. Kaspar Hause é a prova disso.

Obs: Proponho aqui uma breve reflexão. Tente resolver este interessante enigma que é apresentado no filme: Suponha que você esteja em uma estrada. E que essa estrada se ramifique em duas, sendo que cada ramificação termina em uma aldeia. Uma é a aldeia da mentira, na qual tudo que os habitantes falam são mentiras. A outra é a aldeia da verdade, na qual todos os habitantes dizem apenas a verdade. Você, na estrada, depare-se com uma pessoa e intenta saber de qual aldeia ela veio. Que pergunta deve ser feita de modo a descobrir a origem dessa pessoa?

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